No início da década de 1920, o filósofo vienense Otto Neurath (1882-1945), um dos pioneiros do design gráfico, apresentou a Isotype — The International System of Typographic Pictures, uma linguagem pictográfica supostamente universal. Pelo international já sabemos que a ideia era entrar em comunicação com um público realmente amplo: seriam “figuras cujos detalhes são claros a todos e que estão livres das limitações da linguagem: são internacionais”, afirmou Neurath. Os símbolos sugeriam a noção de que todas as pessoas tinham igual valor na sociedade, mas ignoravam diferenças entre raça, gênero e cultura. Por quê? Porque a Isotype foi uma invenção europeia do período neocolonial. Nela, são representados cinco tipos raciais, com o homem branco em primeiro lugar e pessoas (também homens) não brancas como secundárias, uniformemente escuras e com trajes alinhados a traços culturais específicos (como um turbante, por exemplo). Estereótipos que, a partir da visualidade, perpetuam padrões de representação até hoje.
A imagem pode ser um instrumento silencioso de ofensa. O discurso visual muitas vezes opera com base nisso: na reafirmação das hierarquias sociais (quem domina e quem é posto em lugar subalterno). Por sermos alfabetizados para ler e escrever letras, é comum entrarmos na esfera da confusão dos sentidos das imagens, naquilo que é sentido e compreendido pelo grupo representado, mas, por não apresentar o registro formal, é abstrato, e sendo assim, tudo pode ser apenas uma “questão de interpretação”.
O livro Políticas do design (Ubu Editora) aponta para a necessidade de uma ética sólida e atenta que fundamente a prática de quem trabalha com o design. O contexto cultural e político de vários elementos, como tipografia, cores, fotografia, símbolos e gráficos do nosso dia a dia, são apresentados pelo olhar da história e da teoria para que os especialistas em comunicação e criadores de imagem entendam com urgência que também moldam a sociedade. E mesmo que o livro não seja sobre designers engajados no ativismo, a palavra “políticas” no título do livro continua sendo empregada. Essa “habilidade política” para lidar com qualquer assunto de forma a se obter o que se deseja faz parte da rotina do designer. Mesmo que não note, é um político: articula interesses de quem o contrata, do público que quer atingir e o seu próprio.
O volume, originalmente lançado em 2016 e aqui traduzido por Antonio Xerxenesky, é organizado por Ruben Pater (foto), designer holandês que cria e teoriza sobre narrativas visuais que incentivam a solidariedade, a justiça e a igualdade. Para isso, associa o campo do design a outras disciplinas em suas criações, resultando em trabalhos que atingem públicos diversos através de publicações impressas, instalações, filmes e mídias interativas. Mesmo tendo a versatilidade para comunicar em mídias diversas, o autor não assume que o conhecimento que tem em uma área corresponde em igual valor a outra. Pater e todos os pesquisadores da edição de alguma maneira pedem reflexão e calma na produção para que deixemos de reproduzir padrões equivocados de representação.
A aparente “inocência” das imagens só pode ser, ainda, levantada como cortina de fumaça porque estamos inseridos em um projeto de Educação que não atenta (ou atenta pouco) para as imagens e suas complexidades. Usamos, muitas vezes, a palavra ver com o sentido de compreender (“eu vejo isso como um problema”, por exemplo). Isso também ocorre no inglês, com o uso do “I see” com o sentido de “entender”, mas, de fato, mesmo com o crescimento exponencial da comunicação visual, seus efeitos muitas vezes não são avaliados com a devida importância. Não levamos ou não temos tempo de levar em consideração, na rotina de escritórios, agências, redação, que as imagens são — assim como o discurso o é — práticas culturais. São resultados dos valores daqueles que a criam e dos que a consomem, portanto, estamos sempre deformados na prática do olhar, porque somos condicionados por ideologias.
A estética clean e sem serifa, que tanto usamos como representação de sofisticação, por exemplo, pode indicar problemas de ordem ética, porque muitas vezes parte do pressuposto de que esses são recursos “universais”. O livro pontua de forma clara como um projeto como a Isotype simboliza o fato de que a “alfabetização” do design ficou ancorada por muito tempo na suposta objetividade e universalidade do pensamento ocidental. As imagens que vemos todos os dias, e que são feitas de alguma maneira por nós, designers, apontam para o que seria “bom” ou “mau”: qual seria o perfil mais “honesto”, qual corpo seria o "certo” para o biquíni da vez. Participa de forma direta, portanto, da manutenção de hierarquias e de uma “colonização da subjetividade”, porque guia gostos e fabrica imagens que despertam desejos.
Em Políticas do design, todos os autores, de alguma maneira, concordam que os equívocos ao se comunicar com diferentes culturas ocorrem frequentemente, mas que o problema maior está na postura do designer que pressupõe que seu público compartilha com ele os mesmos valores. A Semiologia, os pesquisadores da Cultura visual e os psicólogos estão há décadas estudando os impactos do discurso visual. Por isso, mesmo que os trabalhos criados por designers considerados icônicos sejam tidos como referências, eles não podem ser replicados como padrão universal. É inerente ao design se ajustar às circunstâncias, e da responsabilidade ética vem o exercício de comunicarmos nossas preocupações naquilo que fazemos.
“É claro que a Isotype não era neutra nem objetiva, mas a qualidade técnica e a consistência do projeto tiveram forte influência no design de ícones e de informação ao longo das décadas seguintes”, diz Asja Keeman em um dos artigos do livro, ao refletir sobre a universalidade que Otto Neurath projetou. A questão é que ainda não é claro para muitos de nós que essas representações estão orientadas por princípios que deveríamos rebater. Um exemplo. Coloque na busca de imagens do Google a expressão “ícone figura humana”. Tem mais homens ou mulheres? São magros ou gordos? Quais atividades estão fazendo? Avalie o resultado da primeira página, não precisa muito esforço. Consegue entender que essas imagens não correspondem mais ao que somos ou vemos por aí? Espero que sim.