Pensar no ódio como marca, um registro permanente no corpo, na cidade, no dia a dia social, na pulsão de nosso pensamento. O ódio na ação — a placa em homenagem a Marielle Franco destruída por dois homens brancos —; o ódio na imagem — a presidenta Dilma Rousseff com as pernas abertas, em adesivo automotivo, para que as mangueiras de combustível sirvam de objeto fálico com alvo constante —; o ódio que se segue à palavra — Jair Bolsonaro, chefe do Estado brasileiro, pronuncia-se sobre a crescente mortalidade diante da pandemia do Covid-19 com um sonoro “E DAÍ?” —; o ódio que desafoga como insurreição — os enfrentamentos entre mulheres e policiais durante as manifestações do 8M.
Como forma de seguir os fluxos dos movimentos em fúrias estão os ensaios que compõem Ódios políticos e política do ódio: Lutas, gestos e escritas do presente, lançado pela Bazar do Tempo e assinado pelos pesquisadores Ana Kiffer e Gabriel Giorgi. Nos textos, é debatida uma espécie de narrativa do ódio e suas continuidades como centro de urgências nas dinâmicas sociais do Brasil e da Argentina. Nos últimos anos, com o avanço da direita e da extrema direita, os confrontos são expandidos para além do discurso homogêneo “população versus governo”. Existe algo que pulsa e impulsiona no que diz respeito à transformação política, algo que caminha pelas bordas pronto para chegar no centro e desordená-lo.
Na apresentação do livro, Kiffer e Giorgi assinalam o tema que percorre os dois ensaios a partir de uma reorganização dos núcleos do ódio: “irrupções e inscrições do ódio como rearticulação dos lugares de fala, das posições de enunciação, dos agenciamentos coletivos que podem ser lidos nesse contexto e as guerras de línguas, nas quais se configuram novas formas e circuitos do público, a exemplo das redes sociais, dos fóruns de discussão online, entre outros. O ódio, aqui, não é um tanto (ou não apenas) uma dimensão psicológica, um foco da vida afetiva da subjetividade, mas especialmente uma energia e uma intensidade que altera os pactos discursivos, os laços simbólicos […]”.
Para além do ódio como sentimento que resulta de processos desagregadores e, ao mesmo tempo, apaixonantes [nota 1], os pesquisadores procuram entender quais as maneiras que o nosso corpo (como massa coletiva) responde ao espaço violento e autoritário que voltou a tornar-se cotidiano presente no território latino-americano. Se pensarmos nos estudos deleuzianos sobre o corpo sem órgãos e suas incursões em O antiédipo e a sequência de Mil platôs, observamos uma fuga no que diz respeito ao campo social. Para Deleuze, a sociedade, como corpo, determina-se a partir de seus movimentos de desterritorialização. Dessa forma, como o ódio nos impulsiona, no tecido social, a reagir (seja no confronto da rua, seja nas escritas performáticas, seja ao longo de um isolamento social, e assim por diante)?
Se nos formamos em fuga, nos formamos também em relação e em modos de viver juntos. Esse é um dos pontos abordados por Kiffer em seu ensaio intitulado O ódio e o desafio da relação: Escrita dos corpos e afecções políticas. No texto, dividido em três “cenas”, a pesquisadora traça um contexto no qual o ódio passa pela compulsão, pelas bordas do corpo e chega à relação. Destaco a última cena como a mais pungente do ensaio pela sua análise acerca do lugar de fala no Brasil (e nos países colonizados, no geral) a partir de uma leitura de Poétique de la relation, de Édouard Glissant. Por meio de uma citação de Vladimir Safatle em Quando as ruas queimam, Kiffer inicia o tópico questionando as dinâmicas que o lugar de fala produz e como a sua formação aparece em ondas heterogêneas e não uniformizadas.
Assim, a relação, como posta aqui, seria uma saída para os aniquilamentos da política do ódio e de sua institucionalização no governo bolsonarista, por exemplo. Para Glissant, a relação implica-se no lugar onde vivemos, para além do pensamento. Mesmo que se chegue nesse lugar pela errância, pela fuga, como vimos em Deleuze. Kiffer termina o ensaio esbarrando numa perspectiva de incerteza de nos imaginarmos em novos mundos enquanto vivemos neste. O ensaio de Gabriel Giorgi surge, então, como uma frente que pode responder a essa pergunta. Afinal, ainda vivemos em uma democracia, e, como esse ódio perpassa por ela, é um ponto crucial para continuarmos a mover os nossos corpos.
Arqueologia do ódio: Apontamentos sobre escrita e democracia é o título do ensaio de Giorgi, pesquisador argentino que se dedica minuciosamente aos processos biopolíticos e literários na América Latina. Partindo do governo de Cristina Kirchner, na Argentina, ele analisa de que forma a letra e os pilares democráticos dialogam diante das fúrias políticas, fóruns de haters e espaços nos quais raça, gênero e sexualidade são pontos de antagonismo e justificativas para ataques e violências diversas. Escreve: “O ódio indica, antes de mais nada, o colocar em jogo (isto é: em risco e em movimento) a palavra na democracia: uma redistribuição de vozes, objetos, tons e sentidos na qual se encena, fundamentalmente, uma disputa pelo dizível e pelas regras do inteligível democrático”.
Nessas escritas, como lembra Giorgi — citando Jacques Rancière —, o que importa são os leitores. Os autores são figuras, muitas vezes, anônimas, valendo-se de mecanismos externos, softwares, cartazes, instalações, para dizer o que antes era indizível na esfera pública. O ódio em vida, em força, em luz, para todo mundo ver. Uma sensação enfurecida que vai além do gesto e toca na palavra para que se apreenda, mesmo que em fuga, o instante do perigo.
NOTAS
[nota 1] Ainda na apresentação, os autores falam sobre “regimes de afecções” que, segundo eles entendem, é o campo de estudo no qual se considera “o universo dos afetos como sendo da ordem política e subjetiva”. Assim, sentimentos de ódio, tristeza, amor e outros não são mais da ordem individual.