Em setembro de 1939, no início da Segunda Guerra Mundial, o filósofo alemão Walter Benjamin foi preso pelo governo francês, considerado como um estrangeiro inimigo. Libertado apenas em novembro, voltou a Paris e redigiu seu último e, possivelmente, mais importante texto: as teses Sobre o conceito de história. Em junho do ano seguinte, quando as tropas alemãs ocuparam Paris, ele fugiu em direção a Marselha. Alguns meses mais tarde, em setembro, Benjamin tentou atravessar os Pirineus com um grupo de refugiados. Mas, do lado espanhol, a polícia de Franco ameaçou entregá-los à Gestapo. Acossado pelo nazismo, na noite de 25 para 26 de setembro de 1940, Walter Benjamin se suicidou na cidade espanhola de Portbou.
Por volta de 1978, ao trabalhar no tema do messianismo revolucionário na cultura judaica da Europa Central, o sociólogo Michael Löwy descobriu o “testamento político” de Benjamin. Como escreve no prefácio de seu recém-lançado livro A revolução é o freio de emergência – ensaios sobre Walter Benjamin (Autonomia Literária), o autor foi surpreendido por este “documento único”, que considera como um dos mais importantes textos do pensamento crítico desde as Teses sobre Feuerbach (1845), de Marx. Por isso, no itinerário intelectual de Löwy, há um antes e um depois desta “iluminação profana”.
Filho de imigrantes judeus de Viena, Michael Löwy nasceu na cidade de São Paulo, em 1938. Licenciado em ciências sociais pela Universidade de São Paulo, doutorou-se na Sorbonne sob a orientação de Lucien Goldmann. Reside em Paris desde 1969, sendo diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Considerado como um dos mais importantes pesquisadores da história do marxismo, com livros e artigos traduzidos em mais de 25 línguas, Löwy se tornou uma referência teórica fundamental para militantes revolucionários de toda a América Latina.
Em entrevista por e-mail ao Pernambuco, o autor recorda que, quatro décadas após a escrita das teses (quando teve seu primeiro contato com elas), o stalinismo, em suas variadas formas, ainda era hegemônico no campo da teoria marxista. Entretanto, existia àquela altura um crescimento da variante dialética, revolucionária e emancipadora, representada, de maneiras muito diferentes, por Rosa Luxemburgo, Georg Lukács, Leon Trótski, Antonio Gramsci, José Carlos Mariátegui, dentre outros. “Walter Benjamin tem afinidades com todos estes marxistas, mas seu pensamento é inovador e singular. Como escrevi várias vezes, a leitura das teses foi para mim uma espécie de ‘iluminação profana’: ela exigia uma nova interpretação do marxismo, em ruptura com a ideologia do progresso, incluindo o papel da teologia, e colocando no primeiro plano a ‘tradição dos oprimidos’, a memória dos antepassados vencidos”. Löwy aponta ainda que, no final da década de 1970, havia o impacto das revoluções do então chamado Terceiro Mundo, assim como a contribuição ao marxismo de figuras fundamentais como Che Guevara, Frantz Fanon e Carlos Fonseca (fundador da Frente Sandinista de Libertação Nacional, na Nicarágua).
Em seu novo livro, traduzido para o português por Paolo Colosso, o autor analisa a produção benjaminiana tendo como guia a ideia de revolução. Ao longo de nove ensaios, ele busca compreender a política nos próprios termos do filósofo, evocando a memória histórica das lutas e a convocação à ação redentora dos oprimidos. Desde o primeiro contato com a obra de Benjamin, Löwy começou a ler, estudar e discutir outros escritos do filósofo, tentando compreender seu percurso espiritual e político. Por isso, os temas abordados no livro são extremamente diversos, incluindo os diálogos com o surrealismo, com o anarquismo, com a teologia etc. Para o autor, se se expurga a dimensão subversiva, revolucionária e insurrecional da obra benjaminiana, como costuma ocorrer em diversos trabalhos acadêmicos, perde-se algo de inestimável, que faz de Benjamin um personagem singular, “um cometa em chamas que atravessa o firmamento cultural do século XX, antes de desaparecer em Portbou, sob os rios do Mar Mediterrâneo”. Por isso, o objetivo de seu “modesto livro” é contribuir na exposição deste componente explosivo de sua alquimia filosófica.
A primeira menção ao comunismo na obra de Benjamin aparece em 1921, no ensaio Crítica da violência. Nele, o filósofo não esconde seu menosprezo por instituições estatais como a polícia (“a forma de violência mais degenerada que se pode conceber”) ou o Parlamento (“deplorável espetáculo”). Benjamin aprovava, sem reservas, a crítica antiparlamentar dos bolcheviques e dos anarcossindicalistas, assim como a ideia de Georges Sorel de uma greve geral como tarefa para destruição da violência de Estado. Num outro texto da mesma época, Para a crítica da violência (1920-1921), Benjamin designa seu próprio pensamento como “anarquista”. Em 1924, após a leitura de História e consciência de classe (1923), de György Lukács, e de seu encontro com o movimento comunista por meio da bolchevique Asja Lacis (por quem se apaixona em Capri), o materialismo histórico se torna um componente essencial em seu pensamento. Esse vínculo entre comunismo e anarquismo será um elemento determinante em seu horizonte intelectual e político, conferindo a seu marxismo posições claramente libertárias.
Michael Löwy e Olivier Besancenot lançaram há pouco, pela editora Unesp, uma obra sobre as relações entre marxistas e anarquistas (Afinidades revolucionárias). Perguntado sobre essas afinidades, Löwy lembra que, assim como Benjamin, o surrealista André Breton sonhava com uma aliança entre a bandeira vermelha do marxismo e a bandeira negra dos libertários. “Esta proposta teve momentos de realização, mais ou menos avançados, não só na Primeira Internacional e na Comuna de Paris de 1871, mas também nos primeiros anos da Revolução Russa, na Revolução Espanhola, e continua atual hoje em dia. As experiências dos zapatistas em Chiapas e dos curdos de Rojava são dois exemplos fascinantes de uma convergência deste tipo.”
Ao longo de sua obra, é raro que Benjamin faça críticas diretas a Marx e Engels. Ele se ocupa, sobretudo, de seus epígonos: dos social-democratas num primeiro momento e, depois de 1939, dos stalinistas. Entretanto, um afastamento em relação ao autor d’O capital é fundamental no pensamento de Benjamin, e aparece de maneira explícita nas notas preparatórias às suas teses: a definição de revolução como o “freio de emergência” de um mundo que corre como uma locomotiva da história. A imagem evocada sugere que, se a humanidade deixar o trem seguir o curso determinado pela estrutura dos trilhos, seremos projetados numa catástrofe. Assim, contra a vulgata evolucionista de uma certa tradição marxista, Benjamin defende que a revolução proletária não é o resultado “natural” do progresso econômico e técnico, mas a interrupção crítica de um processo que levará diretamente ao desastre. Tal leitura explica o tom pessimista de seu marxismo, um pessimismo revolucionário que nada tem a ver com resignação ou fatalismo.
Do engajamento de Benjamin em favor de uma esquerda radical, decorre sua avaliação crítica da social-democracia, opondo-se, assim, a uma atitude de espera confortável da chegada inevitável de uma situação revolucionária (que evidentemente nunca chegaria). Além disso, para os social-democratas, o fascismo era um vestígio do passado, anacrônico e pré-moderno. Com espantosa lucidez, Benjamin compreendeu rapidamente o caráter moderno do fascismo, em sua relação íntima com a sociedade industrial e capitalista. Por isso, como escreveu em suas teses, para compreender o fascismo não seria possível considerá-lo como uma exceção ao progresso.
Entre os documentos publicados em 1985 no volume VI dos Gesammelte Schriften, há um que, segundo Löwy, parecer ter uma atualidade gritante: as três ou quatro páginas de notas e referências bibliográficas de O capitalismo como religião, escritas no final de 1921. O texto é evidentemente inspirado no livro A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. Ainda assim, o argumento de Benjamin vai muito além do autor, substituindo uma abordagem axiologicamente neutra por uma radical posição anticapitalista.
A primeira obra de Benjamin notadamente influenciada por ideias marxistas é Rua de mão única, escrita entre 1923 e 1925 e publicada em 1928. Nela, a crítica ao progresso está tomada de uma tensão revolucionária, como se vê já no título do capítulo inicial: “Aviso de incêndio”. Ainda assim, os textos da década de 1920 fazem poucas referências ao pensamento de Marx e Engels, uma vez que seu entendimento do materialismo histórico se dava, sobretudo, pelos escritos de seus contemporâneos.
Para Löwy, o documento marxista-libertário mais importante do autor é seu ensaio sobre o surrealismo, de 1929. Para Benjamin, haveria no surrealismo uma dimensão libertária provocada, em partes, pela hostilidade da burguesia contra toda manifestação de liberdade espiritual radical: “desde Bakunin, não houve mais na Europa um conceito radical de liberdade. Os surrealistas dispõem desse conceito”. Nos primeiros parágrafos do ensaio, Benjamin se descreve como “o observador alemão” situado na posição “infinitamente arriscada entre a contestação anarquista e a disciplina revolucionária”.
Durante seu exílio em Paris (1933-1940), enquanto refugiado da Alemanha nazista, Benjamin parece ter se voltado mais detidamente à literatura marxiana. Nos escritos dos anos 1930, mais especificamente nas Passagens, ele se inspira em Marx para criticar o culto fetichista da mercadoria e analisar as passagens/galerias parisienses como “templos do capital mercantil”. Por isso, o espaço urbano aparece agora como lugar estratégico do combate entre as classes. A cidade em questão é, como se sabe, “a capital do século XIX”. Uma das coisas que mais chamam a atenção de Löwy nas Passagens é a fascinação de Benjamin pelas barricadas, que aparecem ao longo da obra como a expressão material da revolta dos oprimidos. Benjamin interessava-se, sobretudo, pelo papel das mulheres nos combates: elas aparecem jogando óleo quente ou água fervente nos soldados, espirrando ácido sulfúrico nos militares ou então fabricando pólvora.
Os trabalhos de abertura dos grandes bulevares no centro, realizados pelo Barão Haussmann, prefeito de Paris sob Napoleão III, constituem-se como a resposta das classes dominantes à recorrência das insurreições populares, destruindo assim os bairros habituais dos levantes. Apresentada como operação de embelezamento, a modernização da cidade é, para Benjamin, um exemplo do caráter mistificador da ideologia burguesa. Num dos comentários da obra, Benjamin parece resumir sua visão sobre o poder das classes dominantes: “os poderosos querem manter sua posição pelo sangue (a polícia), pela astúcia (a moda), pela magia (o esplendor)”.
Entre 1933 e 1935, alguns dos escritos de Benjamin parecem aderir às promessas do progresso técnico do produtivismo soviético. Os principais textos do período são Experiência e pobreza (1933), O autor como produtor (1934) e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935). Segundo Löwy, o pensamento do filósofo parece relativamente contraditório nesses anos, passando muito rapidamente de um extremo a outro – “por vezes no interior de um mesmo texto, como em seu célebre ensaio sobre a obra de arte”. No entanto, mesmo durante o breve “parêntese progressista”, ele não abandona o tema do romantismo – não apenas na literatura, mas como protesto cultural contra a civilização capitalista moderna.
Benjamin foi um dos raros marxistas de sua época a propor uma crítica radical ao conceito de “exploração da natureza”. Ao ser perguntando sobre os desafios que a esquerda radical tem no presente, Löwy considera que a pauta ecológica, em particular a mudança climática, já é – e será ainda mais nos próximos anos – a questão política e social mais importante do século XXI. “Face à ameaça de uma catástrofe ecológica sem precedentes na história humana, o marxismo tem de ser reformulado, tornando-se um ecomarxismo. Na América Latina, a luta contra os governos neoliberais reacionários, de corte direitista ou mesmo neofascista (como no caso de Jair Bolsonaro), é inseparavelmente um combate democrático, socialista e ecológico. As mulheres, a juventude e os indígenas estão na vanguarda desta luta”.
Por isso, em sua leitura, Benjamin ocupa uma posição única na história do pensamento revolucionário moderno, sendo ele o primeiro marxista a romper radicalmente com a ideologia do progresso. O objetivo do filósofo era reavaliar o materialismo dialético através de um “materialismo antropológico”, resgatando um caráter sensível para a revolução. A ideia de materialismo antropológico é bastante misteriosa na obra benjaminiana, mas está possivelmente atrelada ao seu interesse pelas sociedades pré-modernas – sem classes e sem Estado –, que não viam a natureza como um acúmulo de matérias-primas a serem exploradas. Tal singularidade de sua obra diz respeito à incorporação da crítica romântica da civilização e de elementos provenientes da tradição messiânica judaica.
Como escreve Löwy, “a redenção messiânica/revolucionária é uma tarefa que nos é atribuída pelas gerações passadas. Não tem Messias mandado do céu: nós somos o messias, cada geração detém uma parcela do poder messiânico que ela tem que exercitar”. Em Benjamin, a teologia não é uma contemplação mística do divino: ela está a serviço da luta dos oprimidos. Portanto, a redenção é uma possibilidade que se deve saber agarrar: cada segundo é a porta estreita pela qual pode vir a salvação.
“A ideia da revolução como freio de emergência, e, sobretudo, a leitura ‘ecológica’ que faço de Benjamin só recentemente começou a ser mais discutida. Minha leitura tem um caráter ‘latino-americano’: é a partir da história e da atualidade das lutas neste continente que tento interpretar as teses Sobre o conceito de história. Outro aspecto que começa a ter uma recepção entre os cristãos socialistas no Brasil é o tema do ‘capitalismo como religião’. A obra de Walter Benjamin contém infinitas riquezas. Por isso, eu espero que, um dia, alguém possa escrever uma história ‘benjaminiana’ da América Latina, partindo das intuições de Eduardo Galeano.”