Resenha Estilhacos Divulgacao fev20

 

Certa vez, em entrevista, o escritor martinicano Édouard Glissant declarou que “não se pode escrever uma língua de maneira monolíngue”. No Caribe, nessa diversidade de ilhas, os escritores parecem ter a necessidade de cultivar o plurilinguismo. Agora, parte desse arquipélago está mais acessível para nós por Estilhaços (Editora Demônio Negro), antologia de poesia haitiana contemporânea organizada e traduzida por Henrique Provinzano Amaral, doutorando em Letras na Universidade de São Paulo (USP).

O livro é composto de poemas que se assemelham a estilhaços, fragmentos de um todo, do imaginário do qual faz parte a poética haitiana. Esse imaginário nos é apresentado por cinco autores: René Depestre, Frankétienne, Marie-Célie Agnant, Évelyne Trouillot (foto acima) e James Noël, cada um deles com diferentes aspectos de uma diversidade poética ainda pouco divulgada. Desses nomes, Frankétienne é com certeza um dos mais reconhecidos, tendo já sido cotado para o Prêmio Nobel de Literatura. Apesar disso, talvez ainda não seja familiar para os brasileiros, sem traduções de sua obra até o momento. Em paralelo, outro nome da antologia, René Depestre, parece ter circulado mais pelo Brasil, tanto por traduções quanto por sua presença como imigrante, em São Paulo, na década de 1950.

Estilhaços contém traduções de poemas escritos em francês, língua de que os haitianos se utilizam, ainda que também se expressem pelo crioulo haitiano. Embora os autores escrevam na língua europeia, são nítidas as diferenças do lugar do qual o fazem. As interlocuções com a tradição dos antigos colonizadores não são negadas, como no poema Um tempo de cão de Depestre: “Calhou de eu ser esse poeta / Herdeiro de Arthur Rimbaud / E dos tesouros de Apollinaire”. É uma herança inesperada que tem seus tesouros, mas também seus horrores, expostos em Eu não irei, do mesmo poeta: “os camaradas de fogo / convocaram minha juventude / ao assalto
dos donos do mundo”.

A revolta contra os donos do mundo tem força nessa poesia. Já em Frankétienne, percebe-se como o autor se apropria da literatura francesa à sua maneira, como em
A marquesa sai às cinco horas, poema que parodia a frase que Paul Valéry rejeita como símbolo da literatura banal. Em sua maioria, os poetas da antologia viveram não só no Haiti, tendo emigrado do seu país por razões políticas ou econômicas. Por exemplo, Marie-Célie Agnant, habitante do Quebec desde a década de 1970, é uma das vozes mais proeminentes da diáspora haitiana. Está presente na antologia pela série Poemas sem idade II, marcada também por sua força: “A revolta aoalcance da tua boca / ao alcance das tuas mãos / o coração atrofiado / tu procuras saber / se há algum defeito de fabricação / no molde da dignidade”. Há a necessidade de se lutar,
de buscar a sobrevivência e o poder de voz, como no fim da mesma série: “Sua fala outrora reclusa / hoje rebelde / torturada pela urgência / busca obstinadamente / nos escombros de um país perdido / esta língua de luz”. Évelyne Trouillot, outra voz feminina presente na antologia, em seu poema em prosa Um dia, destaca passagens em que a ilha, ainda que violenta, se mostra acolhedora: “Mas hoje minha ilha dobrou sua asa e eu recolho nela minha pena de pássaro dilacerado entre a incerteza e o voo na beleza esmeralda de sua história palpitante”.

Estilhaços tem o objetivo de ser um variado panorama da poesia haitiana recente, segundo o organizador no texto da apresentação. Nessa seleção, os poemas são diversos entre si, ainda que tenham rumos e contradições em comum. Firmam-se lugares individuais, mas sempre ligados aos outros ao seu redor, como em
A grande marcha, de Évelyne Trouillot, que retoma imagens do seu poema anterior: “Minha pena ainda / sangrenta / grita a recusa / de abrigar a tua ausência / na marcha de um universo / demasiado vão para / saudar / a grandeza / de nossas paixões humanas”. Outro poeta, James Noël, também apela à necessidade da voz, à vontade de expandi-la para os outros, como na série Kana Sutra: “A voz que fala em você, deixe-a falar. Deixe-a falar mais que o razoável, até que ela se parta e faça eco do lado de fora”.

Nesses poemas, apropriar-se da língua a todo custo é uma razão de ser dos poetas. Por ser uma antologia bilíngue, Estilhaços nos oferece uma versão em português dessa poesia e seu texto em francês, possibilitando uma aproximação maior entre o poema e o leitor, mesmo aquele que não domina o idioma. Desse modo, a aversão ao monolinguismo de Glissant se consolida, realçando-se a culturado outro, algo fundamental no contexto da francofonia, ainda tão eurocêntrica. Assim, o desejo de Évelyne Trouillot em Penacho se realiza: “Para dizer minha tão doce ilha / queria poemas em botões de fagulhas / e palavras pirilampas no fundo do poço / mas minha língua em más tintas / se rebela”. Por essa rebeldia, e por Estilhaços, os poetas haitianos podem nos dizer algo de sua ilha.