Resenha Andre Botelho Divulgacao fev20

 
O retorno da sociedade: política e interpretações do Brasil sai em boa hora. Trata-se de um livro sobre a sociologia política, área da disciplina que, em poucas palavras, procura entender o Estado a partir da sociedade. Tal orientação teve pouco espaço no país nos últimos anos, quando análises institucionalistas, de maneira geral identificadas com a ciência política, foram amplamente dominantes. A premissa era de que vivíamos numa democracia consolidada tratando-se, portanto, de entender como nossas instituições funcionariam. No entanto, os traumáticos acontecimentos recentes trataram de desmentir esta crença. Consequentemente, a perspectiva de André Botelho, que destaca a relação entre política e sociedade, ganha verdadeira urgência, afinal, ela pode ajudar a entender até que ponto o conservadorismo e o autoritarismo estão enraizados entre nós.

No entanto, O retorno da sociedade não é um livro de sociologia política, mas sobre a sociologia política. Nesse sentido, faz-se uma espécie de meta-teoria: “sociologia da sociologia política” (p. 14). Mais especificamente, Botelho mobiliza uma área particular das nossas ciências sociais, o pensamento social brasileiro, para estudar uma vertente da sociologia política do país. Faz isso porque entende a relação entre ideias e sociedade como de reflexividade, em que a segunda dimensão influencia a primeira, mas também, observa-se, as ideias podem intervir na realidade.

Em termos mais concretos, O retorno da sociedade examina uma sequência da sociologia política brasileira — aquela que destaca a hipertrofia da ordem privada diante da ordem pública no país. Esta vertente interpretativa se diferencia de outras como, por exemplo, a desenvolvida a partir da cadeira de Sociologia I, da Universidade de São Paulo (USP), que deu grande atenção à luta de classes. Em contraste, para autores como Oliveira Vianna, Victor Nunes Leal, Luís da Costa Pinto, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Maria Sylvia Carvalho Franco, é o embaralhamento entre público e privado que melhor explica a relação entre sociedade e política no Brasil.  

É significativo como esses escritores nem sempre citaram uns aos outros e, particularmente, ao iniciador da vertente, Oliveira Vianna. A ausência de referência podia ter uma motivação política, devido à identificação do consultor jurídico do Ministério do Trabalho durante o Estado Novo com posições autoritárias. Mais significativo, a recorrência do tema do conflito entre ordem privada e ordem pública, no Brasil, indica sua importância, independente dos autores que formam a sequência terem ou não consciência da continuidade entre eles. Esta é uma das possibilidades mais interessantes da categoria de “sequência”, retirada, como esclarece Botelho, da música e, mais particularmente, do estudo da harmonia e “que expressa uma combinação de elementos diferentes e individualizados, mas ligados por uma relação de pertinência” (p. 14).

Por outro lado, O retorno da sociedade enfatiza como a criação por Oliveira Vianna de uma agenda de pesquisa para a sociologia política brasileira aponta como é ambígua a relação entre as chamadas interpretações do Brasil e as ciências sociais institucionalizadas. Se a história das ciências sociais é sempre construída, seus fundadores normalmente sentindo a necessidade, como ocorreu também no Brasil, de demarcarem seus trabalhos em relação ao que chamam de pensamento pré-científico, a existência no país de um “repertório interpretativo” anterior funciona como uma espécie de filtro para controlar a “oferta internacional de teorias”. Nota, além do mais André, que as “interpretações do Brasil” - principal material com o qual conta o pensamento social brasileiro e seu livro - têm tanto uma dimensão cognitiva como normativa, podendo até se converter em forças sociais.

Tal possibilidade é rejeitada por uma das orientações mais influentes no estudo dos intelectuais brasileiros, os trabalhos realizados e influenciados por Sérgio Miceli. Esta vertente interpretativa tem, por sua vez, na sociologia dos intelectuais de Pierre Bourdieu sua principal referência. O que não impede que a perspectiva de André possa trazer resultados interessantes ao tratar do trabalho do sociólogo uspiano. Um dos achados de artigo escrito conjuntamente com a ex-orientadora do autor, Elide Rugai Bastos, é justamente indicar, levando em conta a obsessão do melhor das “interpretações do Brasil” e de nossas ciências sociais com a especificidade do país, como o próprio Miceli se preocupa com a questão. Mostram, assim, como o sociólogo brasileiro, partindo da análise do sociólogo francês a respeito do campo intelectual do seu país, aponta para a dificuldade de formação de um campo intelectual autônomo no Brasil. Consequentemente, os intelectuais continuam sujeitos às demandas da classe dirigente, o que pode ser entendido como mais um capítulo na “difícil distinção entre público e privado no Brasil” (p. 190).

Chama a atenção numa coletânea, como o livro em questão, a notável unidade dos artigos que o compõem. No caso, isso não é mero acidente, refletindo o fato de O retorno da sociedade ser produto de um programa de pesquisa. Talvez ainda mais importante, essa é uma agenda coletiva, o que se percebe especialmente nos artigos escritos em coautoria com a ex-orientadora e com ex-orientandos: Lucas Carvalho, Antônio Brasil Jr. e André Veiga Bittencourt, e no posfácio de Maurício Hoelz. Abrindo caminho para o futuro, André tem sido um dos grandes impulsionadores de uma iniciativa como a Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), sediada na FIOCRUZ (bvps.fiocruz.br), sobre a qual o livro resenhado dá indicações promissoras. O desafio que se coloca agora é a utilização de novas plataformas em abrir caminho para a melhor compreensão da tradição, o que, me parece, continua a ser a melhor forma de lidar com o tempo que nos foi dado viver.