Resenha Mugido Jessica Mangaba fev20

 

Eu lembro de vovô Raimundo, agricultor familiar do Alto Capibaribe, no Agreste de Pernambuco, me ensinando a ouvir a língua das árvores, quando eu era pequena. Ele dizia para eu colocar o ouvido nuns troncos ocos que ele tinha no quintal – e aprender a ouvir. O que ele sabia que eram abelhas, pra mim eram as árvores falando. Eu entendo o que vovô queria fazer – me reconectar, menina da cidade, não somente com o mundo dele, mas com o mundo natural. Vovô, com a sabedoria que dominava, recriava a conexão fundamental entre mim e o universo. Quem também falava disso, de uma maneira bem menos poética, mas igualmente importante, era Marx. Ainda que digam que ele era economicista, produtivista, seiquêseiquêlá, Marx já falava de ecologia no século 19, apontando que o capitalismo lasca a conexão entre humanos e o mundo natural, pra desgraça de ambos. No texto Trabalho alienado, dos Manuscritos econômico-filosóficos, o alemão escreve: “O ser humano vive da natureza: a natureza é seu corpo, com o qual ele deve se manter em constante intercâmbio, para não morrer. Que a vida física e espiritual do ser humano depende da natureza, não quer dizer outra coisa além de que a natureza depende de si mesma, já que ele é parte da natureza” (a tradução minha da versão publicada pela Dietz em 1968, os itálicos são do original).

Com base na obra marxiana, John Bellamy Foster vai criar o conceito da “fratura metabólica” entre seres humanos e natureza, com o qual desenvolve uma crítica marxista do desenvolvimentismo, da destruição ambiental etc. Mas qual seres humanos exatamente? Será que todos estamos igualmente separados ou somos todos igualmente agente separadores? (Insira aquele emoji contrariado.) É nessa contradição dolorida e dolorosa que se insere Mugido [ou diário de uma doula], segundo livro de Marília Floôr Kosby. Lançado em 2017, pela Garupa, finalista do Jabuti em 2018 e publicado em 2019, em Portugal, pela Douda Correria, Mugido, que estava esgotado, ganha nova reimpressão (e dois poemas inéditos!) em 2020, pela editora Figura de Linguagem. Kosby é poeta, antropóloga e doula de vacas, nascida em 1984 em Arroio Grande, uma cidadezinha no extremo sul do Brasil, já perto do Uruguai. Antes de Mugido, ela tinha publicado outro livro de poesia, Os baobás do fim do mundo, pela Novitas, e o premiado ensaio Nós cultuamos todas as doçuras: as religiões de matriz africana e a tradição doceira de Pelotas (Prêmio Açorianos de Literatura e o Prêmio Boas Práticas de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial Brasileiro).  

A fratura metabólica da qual Foster fala se apresenta, de forma escandalosa, na nossa relação com seres não-humanos, mas se faz, também, no tratamento de sujeitos e formas de vidas não-hegemônicos. Em descompasso com o outro, alienado mas alienando, o Sujeito Hegemônico se sente no direito de corrigir, disciplinar, punir, instrumentalizar e finalmente eliminar O Diferente (dele). A partir disso, mas sem criar falsas simetrias, Mugido, usando a carne como metáfora, leva a pessoa a se perguntar: qual a nossa relação com a carne que comemos e a que “comemos”? Ao fazer perguntas corretas sobre agronegócio vs. pecuária familiar, o livro cria um paralelo inédito na poesia, ao conseguir apontar, a partir da violência do modo de produção capitalista, as semelhanças brutais entre o tratamento de humanas e vacas, e entre as manifestações de especismo e de lesbofobia. O poema vaca machorra, inédito, começa assim:

mata
essa vaca machorra
mata esse animal seco
essa vaca sem leite
mata isso
é sem serventia

Vaca machorra? Nunca tinha ouvido falar. Perguntei à mamãe, professora Rozélia, formada por vovô mas também em Medicina Veterinária, o que é uma vaca machorra. “É o que chamamos no Nordeste de ‘vaca maninha’”, ela respondeu. Ah! Me lembrei. Já ouvi gente chamando as vacas assim de “vaca safada”. “É uma vaca que nasceu sem, ou perdeu as capacidades reprodutivas, ou que não dá leite. Elas são geralmente instrumentalizadas pra identificar o cio de outras vacas e, ao contrário das leiteiras, que são mantidas vivas por mais tempo, são assassinadas mais cedo”. Isso é homofobia, mamãe? Não sei, acho que é, ela disse. Enquanto “escuto” o Mugido, me pego pensando na fratura metabólica que se apresenta na nossa relação com essas fêmeas queer, humanas e não-humanas. Porque, ainda que sejamos feministas, nos importamos muito pouco ou nada com a escravização, com a exploração e controle sobre seus corpos e destinos.

valdecy não sabe carnear
mas gosta de daguerrear

e não lhe peçam ajuda
quando o serviço for
partejar
a fêmea que for, do tipo de bicho que for

Aos despedaçarmos um bicho e darmos à sua carne nomes que nada têm a ver com suas partes biológicas, tipo “bacon” ou “cupim”, o desconectamos de sua “humanidade” animal (plmdds nem me venha falar de Kant). Além disso, usamos nomes de animais como xingamento: a mulher vira “vaca”, “piranha”, “jumenta” – como se ser bicho fosse ruim. Pensei muito nisso, que são mais duas manifestações dessa fratura metabólica, enquanto lia o Mugido, por causa do uso que Kosby faz da linguagem: fraturada, misteriosa, quente. Ao escolher inserir termos de um vocabulário rural ou exclusivo dos homens do campo, Kosby nos lembra das limitações do nosso mundo, de fêmeas e urbanas (diga “olá, Wittgenstein!”). Palavras como “rúmen”, “bagual”, “petiço”, “égua gateada” não fazem parte do nosso léxico cotidiano, ainda que sejam o mais óbvio português. Mas não são as palavras estranhas que nos separam do entendimento: é a vida alienante que levamos. Dados de 2015 do IBGE mostram que 84,7% da população brasileira vive em cidades. Isso não são apenas números. O efeito dessa ruptura metabólica entre cidade e campo (que, aliás, precisa ser superada!) é, entre outras coisas terríveis, a nossa completa ignorância sobre uma parte importante da nossa vida, como bem pergunta Kosby na página 22: “você já se alimentou hoje?”. E ela responde, mais pra frente: “se você já se alimentou hoje/ agradeça a um produtor rural”.

Num videozinho de 3 minutos no iutube, de 2017, a filósofa e ativista comunista Angela Davis pergunta: “Como podemos criar relações de solidariedade com outros seres com os quais compartilhamos esse planeta?” Davis, que é vegana, nos faz uma pergunta que transcende escolhas individuais. A questão exige repensar a forma de produção, repensar nosso conceito de abundância, repensar nossas formas de vida, nossa participação em nossas comunidades. Ainda que não seja ela quem trará a transformação em si, a arte tem papel fundamental no exercício de imaginar todas essas coisas, e propagar novas possibilidades. A poesia pode ser, pra quem não tem um Vovô Raimundo, uma forma de ouvir o que não deveria ser O Diferente – as árvores, as abelhas, as vacas, as mulheres, as sapatão, as bichas, os bichos:

eu toda um tímpano só
me confundo com o mundo

Como nos mostra Kosby e seu Mugido, a poesia, na sua melhor forma, nos faz imaginar um mundo novo, com essa galera toda, onde o prazer da carne nada tem a ver com carnificina, e onde poesia nada tem a ver com abstrações: tem a ver com a nossa vida.