Lars Svendsen, autor do livro Moda – uma filosofia (Zahar), é um intelectual que tem a feliz iniciativa de levar o que fala e o que faz a sério, mas sem acreditar que os deuses do saber habitam somente e tão somente o Grande Espaço Acadêmico. O jovem professor da Universidade de Bergen, na Noruega, arvora-se por um tema tão palpitante quanto perigoso mesclando, seja em aberturas de capítulos ou análises teóricas mais consistentes, Gadamer, Nietszshe, Paul Valéry, The Clash, Kant, Absolutely Famous, Baudelaire, Depeche Mode e Barthes, entre outros. Mas o autor não tem pretensão de soar moderninho e iconoclasta ao mesclar hermenêutica e punk: colocando a cara à tapa, ele critica e questiona algumas verdades estabelecidas no estudo da moda, como a roupa como linguagem e os tais significados que emergem do vestuário.

Autor de A filosofia do tédio, lançado no Brasil, Svendsen escreve de maneira direta e às vezes até irônica sobre um tema que nos últimos dez anos deixou de ser conversa restrita a “iniciados” para ganhar tanto as ruas (na medida em que ser “fashion”, seja lá o que isso signifique, virou um imperativo extra-classes) quanto as salas de aula das universidades mais sisudas. Pode-se até acreditar que a moda seja um assunto absolutamente fútil, uma mera questão de escolher entre esta ou aquela roupa, mas basta aproximar-se um pouco mais do tema para entender que o zíper nem sempre desliza tão fácil. Uma boa maneira de perceber tal panorama é deixar de acreditar que moda refere-se apenas ao vestuário: ela fala sobre o design do carro que passa na rua, o assunto que é debatido nos jornais, o tipo de comida que você encontra – ou não – no supermercado, o movimento político que é divulgado em um outdoor.

Não por nada é que o próprio autor inicia seu livro informando que aquilo que o leitor tem nas mãos não é o produto que o próprio escritor havia planejado inicialmente. Svendsen encontrou tantas abordagens quanto senões nas suas primeiras incursões filosóficas sobre o tema moda. Reconhece: sua análise se tornou mais crítica do que ele próprio pretendera, já que o assunto precisa de um rigor necessário ao aprofundamento de todo e qualquer objeto de investigação. São oito capítulos nas pouco mais de 200 páginas originalmente publicadas em 2004. Neles, nos aproximamos de questões como a ideia do novo; a relação entre moda e arte, corpo, consumo e linguagem; a difusão da moda e esta como um verdadeiro ideal de vida. Há também um apêndice no qual o filósofo escreve sobre a crítica de moda (texto apresentado durante sua participação num seminário realizado ano passado em São Paulo). O norueguês abre o livro numa interessante análise sobre a aproximação da moda e da filosofia, cujo namoro é mais conhecido no Brasil através da obra do sempre evocado Gilles Lipovetsky. Aqui, ele avisa de saída, não adianta, mesmo entre aqueles de seu próprio campo de conhecimento, ridicularizar a temática ou localizá-la como assunto deste ou daquele grupo social: é praticamente impossível ficar fora, hoje, do domínio da moda. Mesmo os mais pobres estão incluídos no universo da moda ao reconhecerem que estão fora dele.

Avançando num espaço cuja teoria ainda está em evolução – como toda e qualquer respeitada teoria deve ser -, Lars Svendsen, ao falar sobre o novo e sua absoluta necessidade para a existência da moda, observa como esse novo surge e se espraia entre nós. Aí, ele vai além de “tendências” e “ciclos de moda” para observar que hoje não faz sentido acreditar que algo “está fora de moda”: se antes tal lógica seguia a ideia da substituição, hoje estamos no momento de uma lógica de suplementação ou, melhor dizendo, de acumulação. Isso significa dizer que agora uma roupa ou estilo não sai de cena simplesmente para dar lugar a outro: a velocidade da moda contemporânea faz com que tais roupas e estilos tornem-se simultâneos, que diferentes olhares e vontades coexistam num mesmo momento, onde dizer o que é “novo” e “velho” não é tarefa fácil. Há aí, no entanto, algo que precisa ser reconhecido: apesar da acumulação ser uma realidade, é certo que há uma regularidade – principalmente mercadológica, é claro – em trazer um novo que visa encerrar, nem sempre com êxito, determinado “comportamento fashion”. Um exemplo fácil é que neste exato momento o decorativismo, os volumes e estruturas que deixaram os corpos robóticos e barrocos (Balenciaga e Alexander Mcqueen são ícones desse estrutural-suave) estão dando lugar a uma “limpeza” nos looks que une os 1960 e os 1990. Vão falar em recessão e outras desculpas para explicar tal mudança, mas ela é produto antes de mais nada da necessidade de fazer o olho respirar e ver algo novo, ainda que esse novo tenha seus sessenta anos de idade.

Outras searas estabelecidas no estudo da moda também são observadas criticamente por Svendsen, como os princípios de imitação (voltado para classes acima da nossa) e o de diferenciação (voltado para pessoas de nossa própria classe), duas ideias fundadas em Veblen, um dos clássicos da área. Para este, a moda era antes de tudo um demarcador de status social, um artifício utilizado por aqueles não privilegiados para, ao menos, parecerem privilegiados. Mas, através de Simmel, o professor norueguês observa que o domínio da moda não é uma característica exatamente das classes mais empoderadas economicamente. A partilha dos princípios que regem tal espaço é ampla, difusa, basta pensar na vanguarda e naqueles que a detonam (artistas que quase sempre não possuem magníficas contas bancárias). Ao mencionar que não consumimos uma determinada moda apenas porque ela vem “de cima”, de um grupo específico, o autor envelhece uma das mais recorrentes ideias do espraiamento da moda, a do “gotejamento”. As classes altas, aliás, também chegam a imitar as classes inferiores, lembra. É interessantíssimo quando, no capítulo dois, somos informados que a adoção do estilo “inferior” pelos “superiores” já aparecia no século 16, quando as roupas rasgadas usadas pelos soldados mercenários começaram a ser adotadas pelas classes altas. Não sejamos ingênuos, no entanto, em acreditar que essa imitação significa qualquer adesão, humanização ou politização: a calça rasgada do mendigo difere-se tanto em dígitos da calça rasgada da Diesel quanto no aspecto simbólico de cada uma. Há um imenso abismo entre as duas.

Outra verdade repetida mas não questionada é o fato de as roupas serem uma linguagem. Neste sentido, ele simplesmente desmonta a ideia de Alison Lurie, autora de A linguagem das roupas: ela defende que o vestuário tem uma gramática própria, assim como um vocabulário distinto. Nos expressamos através de suas peças, falamos através de vestidos, gravatas e meias – é inclusive possível perceber nossas “falhas” psicológicas através de eventuais marcadores estilísticos (a mulher com mais de 30 e seu apego por babadinhos infantis). Svendsen apresenta tais concepções para depois informar: Lurie comete uma interpretação que em vários momentos chega a ser uma paródia, é ingênua em suas analogias. Aí, ele saca outro teórico comum no estudo da moda, Barthes, para observar melhor essa aproximação entre moda e linguagem – uma quase covardia com Lurie, bom dizer. Mostra que a análise semiótica baseada em significante (a roupa em si) e significado (o que esta roupa expressa, seja para mim ou para o mundo que me cerca) é um terreno mais do que fértil para analisar o comportamento das roupas, apesar de tal terreno ser feito de areia movediça. O significado tem relação com quem diz e com quem olha, como aquele e este olham, como tal olhar se incrusta neste ou naquele cotidiano. Ao mostrar o caráter absolutamente instável que tais significados possuem num mundo feito de fragmentos, contextos e perspectivas díspares – o que coloca o próprio estruturalismo no qual um dia se baseou Barthes em questão -, Svendsen chega a uma interessante conclusão: a moda está bem mais próxima da música e das artes visuais do que da linguagem.

Apesar de observar esse pluralismo e a horizontalização (não total, importante dizer) da moda, Svendsen concorda que o conceito de liberdade que é frequentemente relacionado ao tema é extremamente frágil: quando geralmente nos opomos a um estilo, dizemos não a determinado código, o substituímos por outras normas estéticas. A imensa oferta visual, lembra ele evocando Anne Hollander, é fortemente tirânica: precisamos hoje escolher estilos de vida antes mesmo de entendermos quem mesmos nós somos. Nessa relativa liberdade moderna, a coerção, assim, reside na recusa de uma tradição anterior para a sujeição à próxima. Não é simples como parece, não apenas vestimos o que aparece na novela ou na última São Paulo Fashion Week. Reconhecemos várias vezes o mecanismo e hoje temos mais chances de refutá-los. Sim, queremos (queremos? Bourdieu não concorda) um novo que deveria surgir para refrescar nossas vidas, nos dar alegria, seja ela materializada em um novo batom, esmalte, bolsa, carro, piso, joia. Talvez seja possível encontrá-la nas prateleiras e vitrines, mesmo se amanhã você passar por um outdoor que categoricamente informe que seu batom, esmalte, bolsa, carro, piso ou joia estão velhos. Talvez, se os amigos estiverem em dia, algumas contas e amores também, o outdoor permaneça falando sozinho. Talvez, como Svendsen coloca, estejamos perto de entender que é a própria moda que serve para expressar (lindamente, lembrando) nossa realidade um tanto fictícia e a instabilidade de nossas identidades. Talvez a moda esteja aí, enfim, para mostrar o quanto você precisa dela – mas ainda mais de sua própria carne, coração e sangue.


Fabiana Moraes é doutoranda em ciências sociais e jornalista.


O livro:
Moda: uma filosofia
Editora Zahar
Páginas 224
Preço R$ 29