Podemos imaginar “O que é isso?” como uma das principais perguntas dentre muitas formuladas por nossos antepassados mais remotos. Nela, ouve-se também um “aqui”: isso que está perto de mim, ou de nós, e que ainda não se sabe ser bom ou perigoso de alguma qualquer maneira. Logo, deve ter vindo uma outra: “E aquilo lá, o que é”? Podemos imaginar também que, pelo menos sobre coisas visíveis, as perguntas mais insistentes desse tipo foram a respeito daquelas que se repetiam. A começar, de novo, com o que estava próximo. Mas, ainda que cotidianas, talvez as coisas literalmente inalcançáveis, impossíveis de serem tocadas para um melhor exame fossem as mais intrigantes. E, por isso mesmo, propícias ao fermento da especulação e nomeação.
Aliás, da mesma forma que hipotéticos antepassados, tão distantes no tempo. Pensei neles a propósito das muitas respostas em torno do que são As estrelas, que constituem o livro de Eliot Weinberger com esse título, publicado na ótima coleção Fábula, da Editora 34, dirigida por Samuel Titan Jr., que também se encarregou da tradução.
Weinberger tem uma noção movente, digamos, de seus textos que ele concebe como ensaios, embora nem sempre pareçam sê-lo, já que tangenciam a narrativa de ficção e a poesia. Um ensaio pode migrar de um a outro de seus livros, e depois de publicado pode também reaparecer sensivelmente alterado. Essa própria edição de As estrelas, com ilustrações de Fidel Sclavo, teve outras encarnações, a primeira delas misturando línguas e alfabetos para acompanhar imagens de Vija Celmins, numa publicação do Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York.
Poesia da China milenar, sagas islandesas, mitos dos maori e de povos indígenas anteriores à criação dos EUA são algumas das tradições de fora dos cânones literários ocidentais que Weinberger conhece bem e de que tratou em ensaios ou organizou e traduziu coletâneas para o inglês, assim como livros de Borges, Vicente Huidobro e Octavio Paz. Seus textos normalmente se baseiam numa infinidade de fontes, incluindo escritos sagrados, antigas crônicas de viajantes, livros de historiadores, antropólogos e especialistas de outras áreas, que ele costuma creditar. Se vários poderiam ser lidos como poemas, As estrelas lembra experiências da vanguarda moderna e, assim como às vezes ocorre nelas, faz uso de alguns procedimentos poéticos básicos. A diagramação espacializada de frases sobre as estrelas tem o efeito de uma dança de versos livres ao longo das páginas, visualmente na esteira de Mallarmé – e ainda mais perto dos caligramas imitativos de Apollinaire: aqui são como constelações de letras, palavras, frases brilhando em negativo no céu da página (ou, segundo o próprio Weinberger, estrelas parcialmente ocultas por nuvens dispersas, as áreas em branco do papel). E as afirmações sucessivas assemelham-se à estrutura anafórica comum na poesia oral, muitas vezes sem autoria definida, de povos de épocas e lugares diversos, desde os registros milenares que remetem à “madrugada das formas poéticas” (na bonita expressão de Segismundo Spina) e seu emprego frequente de paralelismos e repetições.
As estrelas está entre os seus experimentos mais radicais naquela estratégia geral de deslocamentos, já que se diz todo feito de trechos de outros textos, numa colagem de citações sem identificação de autoria (só reconheci o dito de Pascal sobre o assustador silêncio eterno dos espaços infinitos). Algumas citações se completam, outras se opõem, mas no correr da leitura o que se destaca é a extrema diversidade. As estrelas “são os caçadores de focas que perderam o seu rumo”, e logo depois “são os caçadores de avestruz que passam a noite ao relento”; ora “não mudam nunca”, ora “estão em fluxo constante”, ora “são o Intransitório na forma de andorinhas alimentando-se do fruto da Árvore da Imortalidade que cresce na ilha do Lago do Falcão Verde”; ora são descritas por qualidades objetivas num vocabulário comum: elas “brilham, piscam, cintilam, reluzem”, ora em termos mais especializados: “são, como toda matéria, feitas de quatro espécies de matéria: prótons, nêutrons, elétrons, neutrinos”. E também são “o Abrigo dos Cães que Ladram”, “o Rio Serpentino de Poeira Reluzente”, “O Lugar Onde Há Que Se Prosternar”, “a Ascensão dos Cadáveres Empilhados”, “o Prato Quebrado, o Melão Podre, a Luz Celestial”, “o Duplo Duplo”, “o Ventilador”, “o Grande Tubarão Azul que Devora Nuvens”. Em suma, o que se afirma sem parar é o ser da diferença. Estrelas são isto, aquilo, aquilo outro e outro e outro. Não à toa, embora se diga que “sua existência é improvável”, a lista também passa pelo absoluto das definições, que ao mesmo tempo relativiza e legitima todas: “elas são, elas simplesmente são”.
Assim, fontes muito diversas são convocadas para realizar alguma coisa como um poema, que remete ao arquétipo funcional de um refrão: presentificar pela repetição. Mas, nesse caso, numa espécie de refrão mutante que vai repondo afirmações possíveis sobre as estrelas. Não deixa de ter paralelo com o que nos dizem os astrônomos: aquilo que vemos à noite com a mesma aparência e chamamos de estrelas é, na verdade da ciência, uma infinidade de corpos celestes diferentes, inclusive alguns que já nem mais existem. Seja como for, quem quer que tenha reparado em estrelas, ou minimamente prestado atenção na enorme quantidade de referências simbólicas com base nelas sabe da variedade dos seus modos de ser. Talvez por isso Weinberger faça o texto fluir pela reiteração de proposições, sem nunca concluir o que afinal são as estrelas. Sua identidade permanece em aberto, com elas sendo sempre o que se pode imaginar que sejam.
Recentemente, como legenda para uma fotografia postada nas redes sociais, me ocorreu chamar de estrelas de chão as flores de um ipê espalhadas no asfalto. Na hora, o que me veio foram os versos de Orestes Barbosa, na sua famosa canção com Sílvio Caldas. Mas é bem provável que Weinberger, que eu já tinha lido, tenha dado uma ajuda. Eu poderia retribuir com uma virtual linha a mais para o seu livro-ensaio: as estrelas do céu são flores do tempo em que todas caíam para cima. Caberiam outras frases. O que faz pensar que esse livro agora em português fala também ao nosso presente, pela afirmação da possibilidade de convivência na explícita diversidade.
Vale lembrar que Weinberger é um crítico atento da cena política, e dos governos norte-americanos em particular, como se pode ver em seu Crônicas da Era Bush (publicado no Brasil pela Record). O que são as distantes estrelas é uma questão que, ao menos literariamente, não importa resolver. Esta continuará sendo uma outra história, mudança proliferante, regeneração interminável, como reler um poema. Sem descartá-la, mas bem mais abaixo, o desenrolar do que virá a ser chamado História, sobretudo o incrível retorno de um conservadorismo exclusivista e destrutivo que se espalha pelo mundo, é o que, pedindo respostas urgentes, nos devolve à pergunta do início, atualizada com Weinberger para: mas que porcaria é isso?