Resenha Gertrude Reproducao dez19

 

Símbolo de uma geração de escritores e artistas geniais, como Picasso e Fitzgerald, lésbica avant la lettre, judia e expatriada, autora de uma obra vasta, irrequieta e de difícil classificação, que causou certo escândalo e muita piada por onde passou, muito se sabe ou se especula sobre a figura de Gertrude Stein (1874-1946), embora os seus livros nem sempre sejam lidos com a mesma paixão e engajamento.

Com exceção talvez de sua narrativa mais conhecida, Autobiografia de Alice B. Toklas — que, no entanto, dá uma ideia limitada do que foi a literatura dessa “chata genial”, conforme a definição de Augusto de Campos —, quando lembramos de Stein o mais comum é que nos venha em mente o célebre verso “Rose is a rose is a rose is a rose” ou mesmo o divertido filme de Woody Allen, Meia-noite em Paris, que retrata a geração da escritora, e inclusive ela, que enche o protagonista de conselhos literários.

Em 1974, no centenário de Stein, o poeta concretista reclamava que apenas um dos livros da autora havia sido editado no Brasil, Três vidas, inspirado nos Três contos de Flaubert – Stein chegou a afirmar que tudo que ela fez foi por influência de Flaubert e Cézanne.

Nos últimos anos, se a situação da obra de Stein no Brasil mudou, não chegou a mudar tanto assim: os poucos livros editados, quando editados, em sua maioria, seguem fora de catálogo, como a própria Autobiografia (Cosac Naify, 2009) e Três vidas (Cosac Naify, 2008). Por outro lado, uma pequena parte de seu teatro foi lançada recentemente em O que você está olhando (Iluminuras, 2014), assim como um pequeno conjunto de contos escritos para o público infanto-juvenil, Para fazer um livro de alfabetos e aniversários (Iluminuras, 2017), e seu ensaio Picasso (Âyiné, 2016).

AS VIDAS DE IDA

O leitor brasileiro terá outro meio de se aventurar por essa obra tão única, agora por conta de um dos livros mais inventivos de Gertrude Stein, Ida Um Romance, que acaba de ser lançado pela novíssima Ponto Edita – e com projeto gráfico primoroso assinado pela equipe da editora, cuja forma do livro remete a uma coluna de fofocas e a um caderno rosa, por seu formato estreito e alto e suas cores aberrantes. Trata--se de um dos últimos romances escritos pela autora, publicado em 1941, quando Stein já era uma escritora famosa, e que também permanecia inédito entre nós.

Na verdade, Ida poderia ser pensado como um romance que dá sequência aos contos de Três vidas, sendo um exemplar deste gênero narrativo que Stein compôs em seu diálogo sempre profícuo com as artes plásticas: o retrato. Depois de “Melanctha”, a “boa Anna” e a “gentil Lena”, as três protagonistas do livro de contos, Ida é uma personagem que se singulariza, entre as mulheres de Stein, por ser absolutamente distraída e por não fazer quase nada em mais ou menos 150 páginas de uma prosa meio hilária e absurda.

Neste romance sem história, a vida de Ida consiste em descansar, falar sozinha, cuidar de vários cachorros, realizar atividades sem importância, trocar de maridos, se apaixonar eventualmente e se deslocar de uma cidade para outra, muitas vezes percorrendo longas distâncias em uma única frase: “Foi de Washington para o Wyoming, do Wyoming para a Virgínia e aí teve a sensação de que nunca tinha estado em Washington embora é evidente que tinha e foi para lá outra vez”.
A escritora Susan Sontag notou que a graça da prosa de Stein, em larga medida, deriva justamente da arte da performance – pelas marcações cênicas que dão também o tom humorístico da narrativa – e menos dos códigos discursivos convencionais.

De fato, muito do efeito humorístico do livro vem justamente da sensação de vazio na vida dessa espécie de celebridade sobre quem Stein chegou a dizer, em carta a uma amiga, que teria sido inspirada em uma Duquesa de Windsor “e em sua relação com a publicidade”. Mas a inspiração, se é que houve, não chega a ser evidente no decorrer da narrativa, que se afasta de qualquer projeto de linguagem realista.

ESTILO CUBISTA

Escrito com o “inglês básico” do qual fala Augusto de Campos sobre a escrita de Stein, marcada pela exploração de uma sintaxe enxuta e palavras de poucas sílabas, o romance é uma mistura de experimentalismo na prosa (muito se comenta sobre a “prosa cubista” da autora, feita em colagens) e uma espécie de conto de fadas, repleto de construções frasais como esta: “Ida acordava. Depois de um tempo se levantava. Então se punha de pé. Então comia alguma coisa. Depois se sentava. Assim era Ida”.

O poeta notou ainda que é o núcleo da frase, e não da palavra e muito menos da letra, o foco privilegiado das transgressões de Stein. Daí as variadas torções na sintaxe e o apagamento e deslocamento de sinais variados de pontuações – sobretudo a vírgula, mas também pontos de exclamação e de interrogação, que nunca são usados. São tipos de experimentações que, no entanto, não soam herméticas, embora estranhas, e sobretudo engraçadas, como se fosse uma prosa infantil, mal escrita ou primitiva.

Trata-se de uma narrativa que, como propõe o tradutor Luís Protásio em nota sobre a tradução, deve ser lida também com os ouvidos – ou mesmo como poesia. Na tentativa de reconstruir uma espécie de “presente contínuo”, em oposição à ideia de sucessão, fundamento do romance realista, Stein dilata e prolonga o momento, paralisando a ação por meio de um excesso de gerúndios e de repetições, recursos que a tradução busca reproduzir, como em soluções deste tipo, próprias do português: “E tudo isso pode parecer piada contudo é tudo verdade”.

O volume conta ainda com outros pequenos textos de Stein e também sobre a autora, a exemplo da conferência Como a escrita é a escrita, em que ela define a escrita como se oferecesse um resumo da vida de Ida: “As pessoas não sabem para onde estão indo, e de todo modo elas estão indo a seu modo”.