E toda vez que na rua eu caminhar
E ouvir de longe sua voz a ecoar
Tenho certeza de que agora não ando sozinho
Seu Tranca Rua é dono do meu caminho.
(Ponto do Exu Tranca Rua)
Como a maioria dos cariocas, moro perto de morros. Desde pequena, lembro-me de acordar, lá pela madrugada do dia 23 de abril, com o foguetório saudando São Jorge, sincretizado no Rio de Janeiro com Ogum. Nos últimos anos, o silêncio tem se imposto em favelas e comunidades onde as novas formas de evangelização racista se mesclam à violência do Estado. A alteridade religiosa, cultural, até bem pouco tempo negociada na vida cotidiana, torna-se uma ameaça diante da dobradiça religiosa-política que almeja um modo único de educar, festejar e ligar-se ao sagrado.
Nesse sentido, a leitura d’O corpo encantado das ruas, de Luiz Antonio Simas não é somente necessária, como oferece caminhos de resistência às novas tentativas de domesticação da alegria miúda das ruas que fere a regulação da cidade transformada num triste panóptico desprovido da energia circulante, do axé, que anima corpos e ruas.
O leitor impulsivo talvez entenda as 42 crônicas-ensaios de Simas como uma coleção de pequenos registros da cidade, quase sempre testemunhais e bem-humorados, tendo como eixo principal as religiões de matrizes africanas e as sociabilidades estruturantes da identidade cultural da cidade. Mas, a leitura atenta revela o projeto maior do autor de Almanaque brasilidades (2018), de encarar o Rio contemporâneo como um espaço de enfrentamentos ou negociações entre a memória coletiva, a resistência dos corpos segregados e a luta permanente contra o racismo que sempre circundou os contatos afro-ameríndios, e mesmo as tradições de populares que envolviam brancos, como a Festa da Penha.
Sem dúvida, essa é a marca da pesquisa e da escrita de Luiz Antonio Simas. É contra essa “arenização da cidade”, o controle dos espaços e do movimento dos corpos, cujo símbolo mais visível seria o Maracanã dividido por classes, que a escrita de Simas reage. Ao defender o encontro, mesmo o confronto, seu texto não busca um apaziguamento cordial entre opressores e oprimidos, mas a possibilidade de vivenciar a rua a partir da subjetividade, gingas, contrabandos, brechas, contradições com a imprevisibilidade provocada pelo outro.
Não à toa o livro simula, de certa forma, uma escrita-oferenda, uma escrita-padê – oferenda a Exu antes de se iniciarem os trabalhos da casa - em tempos em que o ódio parece dominar nossos caminhos. Se o livro se inicia com a crônica Padê, envolvido pelo feliz projeto gráfico que traz na capa um saquinho de Cosme e Damião e um ponto riscado de Seu Sete Encruzilhada, o lugar que hoje ele ocupa é da encruzilhada.
A encruzilhada é ponto de encontro e de dispersão entre diversos caminhos. Estar na encruzilhada é ter que abrir mão da neutralidade e colocar-se em movimento. Torna-se fácil compreender por que as oferendas para Exu são dispostas nestes locais. Não caberá nessa resenha estabelecer as inúmeras variantes, nomes, adaptações nas diversas religiões de matrizes africanas. Mas, na prosa de Simas, seu Zé Pilintra desce de Pernambuco até a Lapa e é capaz de encontrar-se com Legba, ambos moradores da rua. Saem junto com Maria Molambo em busca de Exu cantando um sambinha, jogando uma porrinha. Que civilização branca é essa que tem medo desses corpos encantados? O que nós vemos na presença desse invisível que nos assusta?
Ou nas palavras do autor: “Sou cada vez mais um cambono da gira de lei onde baixam os foliões, bêbados líricos, jogadores de futebol de várzea, retirantes, feirantes, capoeiras, cordelistas, pretos velhos (...) beatas, iaôs, marujos, namorados de subúrbio, (...) mestres de bateria, baianas, bicheiros, malucos, rezadeiras e todo tipo de assombrações e fantasmas.” Reforço, essa postura não significa um apaziguamento das diferenças, mas uma postura, própria das religiões de afro-ameríndias, em que o contraditório se faz sempre presente.
A respeito do carnaval carioca, por exemplo, Simas abandona os extremos do consenso confraternizador e da exploração comercial para pensar a festa como “aguçadora das tensões”. Ou, como na feliz síntese, “a gente não brinca, canso de repetir isso, porque a vida é mole; a turma faz isso porque a vida é dura.” Esse é o princípio de uma quebra hierárquica que encontra seu ponto mais visível para grande parte da sociedade no carnaval, mas que acontece cotidianamente nas esquinas da cidade.
Em diálogo franco com a obra de João do Rio, autor do marco da modernidade carioca A alma encantadora das ruas (1908), mas também com Walter Benjamin, Seu Zé Pilintra, Sabina, Dona Ivone Lara, o médium Zélio Fernandes de Moraes e tantos outros, o saquinho de Cosme e Damião que Luiz Antonio Simas nos oferece é mais uma pedrinha miudinha no caminho de sua obra incontornável para quem quiser o Rio de Janeiro, mas também para quem deseja começar a pensar o Brasil a partir da cultura das ruas.