Cecilia.Pavon Timo Berger Divulgacao

 

Como ler poesia? – pergunta-se Alicia Genovese em Leer poesía: lo leve, lo grave, lo opaco, coleção de ensaios na qual a pesquisadora argentina mapeia o território da linguagem poética, identificando-o como marco de determinado período. A questão, de acordo com os argumentos de Genovese, deixa a poesia contemporânea em terreno de contradições no que diz respeito à recepção dos leitores. Se, por um lado, a produção é vasta, por outro, ainda é pouco discutida nos meios culturais e festivais literários. Questionar a maneira de interpretar o poema coloca em jogo o seu valor, ora encarando-o como objeto de escrita supervalorizado, ora como algo que não deve ser lido, pois não agrega valoração suficiente. Na pista dos emaranhados do texto em verso, pergunto--me, então, como ler Cecilia Pavón?, autora de Discoteca selvagem, traduzido e organizado por Clarisse Lyra e Mariana Ruggieri, e publicado pela Edições Jabuticaba.

Pavón nasceu em Mendonza, Argentina, em 1973. Fundou, em 1999, com Fernanda Laguna, artista visual e escritora, o centro cultural e selo independente Belleza y Felicidad, que se manteve como ponto de encontro de vários artistas e escritores contemporâneos até 2008. A presença da poeta na comunidade, com aulas, performances e incentivos à cena independente, nos dá, a princípio, um caminho possível para elaborar a pergunta inicial. A poesia de Pavón alude à cultura e aos elementos da arte e da escrita como itens o que se pode nomear em lista de objetos – “rádios, computadores, microchips, barras de chocolate”. [nota 1] E, quando são nomeados, os conceitos tornam-se também emoção e aproximam à literatura o que antes era inútil também porque desconhecido. Como método, 27 poemas com nombres de persona [nota 2] é o exemplo direto do que chamo de “cultura desmontada”, uma ideia que perpassa todo o projeto literário de Pavón. No livro, os títulos dos poemas são nomes que vão desde amigos da autora a pesquisadores de software e personas culturais. Cada poema é uma espécie de bilhete interessado em resgatar a materialidade do mundo.

Nos textos de Discoteca selvagem, o intuito em desmontar a cultura é próprio da busca pelo poema e por aquilo que o define, como visto neste exemplo: “O poema é qualquer coisa / isto é algo branco / eu não deveria vir de tarde ao café / porque tem esse garçom / que uma vez me assediou. / Sempre esqueço e desço do mesmo jeito. / Penso que lá vou me reconectar com a poesia. / Quero me reconectar com a poesia. / Onde estão Damy, Gaby, Sergio, Santi, / Fer e todos os poetas? / Ler me faz bem, / mas me reconecta com a poesia? / Este é um texto para poetas / que a cada dia somos mais”. O trecho consiste na primeira estrofe de Novo livro, poema que se forma a partir de uma tentativa de escrita, aparentemente, fracassada. Depois de enumerar seus amigos poetas, o eu lírico questiona-se sobre o ato de leitura como propulsor do poema. Fica a dúvida se a poesia, aqui, faz parte da literatura ou de uma espécie de raio fragmentador do cotidiano. Um ponto de curva que não se apreende lendo – “(…) a poesia é algo puro e radical, algo fantástico (…)” –, mas sim vivendo, laboriosamente, o mistério.

Existe um elemento surpresa drástico e cômico que dialoga, em seus poemas, com certa definição do que é a literatura e aparece, por exemplo, neste fragmento irônico de Férias: “Não me digam que a literatura não é algo muito frágil. / A literatura é algo muito frágil. / Apesar de que pensando agora sempre encarei / a literatura de modo muito superficial.” Pavón tensiona, constantemente, no seu processo de desmonte, não só o que é cada elemento já condicionado por nós: poema, literatura, cultura etc, mas como nós os lemos. A contradição de que fala teoricamente Genovese está exposta de várias maneiras nos poemas de Discoteca selvagem e, para além de compreender uma recepção do leitor, o que fica é o movimento entre o ato verbal e a concentração de sentido.

Em Hoje vi um quadro, Pavón afirma que seus poemas são como “biscoitinhos de canela mal-assados”, receita feita de qualquer jeito durante o domingo – a preguiça ganha corpo no verso, as formalidades são motivo de risadas gostosas para os leitores. O seu ato verbal está em ações breves e simples, porém, decisivas para a formação do poema, como a caneta que cai no chão e não a deixa escrever. Também está na demarcação de episódios de gênero, como o garçom que a assediou e ocupa o café onde ela sente vontade de escrever. “Parada na calçada como estou agora / olhei em direção ao lugar de onde vêm / menos carros e suspirei, e meu corpo foi / raptado pelas voltas do amor.”, escreve em O festival de lágrimas, um dos poemas mais bonitos do livro. A concentração de sentido encontra-se em tais aventuras pequenas, como apontado por Clarisse Lyra nas notas das organizadoras [nota 3] – entrar no bar, tomar um banho de mar à noite ou ficar parada na calçada, é assim que se lê Pavón; no entrelaçamento das brechas do tempo e espaço, ali foi montada a pista de dança dos que se arrastam e flutuam ao mesmo tempo.

 

NOTAS

[nota 1]. Verso do poema Coisas roubadas nos Estados Unidos, presente em Discoteca selvagem.

[nota 2]. Em seu blog, na época, Pavón afirmou que escreveu o livro, publicado em 2010, quando estava apaixonada e não conseguia pensar na cultura, mas somente na vida cotidiana. O “êxtase” de uma rotina de paixão trouxe a necessidade em evocar os nomes que a lembravam ideias teóricas e pequenos afetos.

[nota 3]
. As tradutoras e organizadoras produziram, a la Pavón, fragmentos-cartas nos quais conversam sobre os poemas e como eles atravessam a rotina de cada uma. As notas são uma espécie de continuação do universo desmontado da argentina: “querida mari, acabei de ler num poema da pavón que a vida é uma aventura pequena, como entrar num bar. essa semana fiz uma pequena maluquice, entrei à noite no mar (…)”