A literatura francesa contemporânea recebeu um certo fôlego de tradução nos últimos meses no Brasil. É um ótimo sinal. Édouard Louis denuncia o interior francês atrasado, chucro e violento em O fim de Eddy; A ordem do dia, de Éric Vuillard, demonstra que o empresariado, muitos com indústria ainda em atividade, apoiou Hitler desde a primeira hora do nazismo; o lirismo violento de Abdellah Taïa em Aquele que é digno de ser amado; em Serotonina, Michel Houellebecq observa os coletes amarelos ainda enquanto as manifestações ocorrem. A principal questão de todos esses livros é a hipocrisia. Citando políticos, empresas e eventos pelo próprio nome, aparece uma literatura agressiva, com forte componente reativo e sem nenhum tipo de acordo com qualquer poder.
O ambiente literário também não passa ao largo da denúncia da hipocrisia dos laços sociais. É quase impossível ver um autor do establishment brasileiro citar outro, como faz aqui Virginie Despentes em Teoria King Kong, ao comentar a recepção de seus próprios romances: “Ninguém sentiu, por exemplo, necessidade de escrever que Houellebecq era bonito. Se ele fosse mulher, e se vários homens tivessem amado seus livros, teriam escrito que ele era bonito. Ou não. Mas saberíamos suas impressões sobre a questão. E eles teriam procurado, em nove a cada 10 artigos, encontrar suas motivações e explicar, em detalhes, o que fazia com que esse autor fosse tão sexualmente infeliz. Teriam lhe explicado que a culpa era dele, que ele não se comportava corretamente, que ele não deveria reclamar do que quer que fosse. De passagem, teriam feito piada com ele: mas você já se viu no espelho? Teriam sido extraordinariamente violentos com ele, se, na posição de uma mulher, ele tivesse falado sobre o sexo e o amor com homens como ele fala do sexo e do amor com as mulheres. Talentos equivalentes, tratamentos diferentes”.
Acaba de sair no Brasil, com tradução de Marcela Vieira, o primeiro volume da trilogia A vida de Vernon Subutex, romance de Despentes que se tornou sucesso imediato na França, a ponto de guias oferecerem pacotes para passeio aos locais de Paris citados no livro. Desde já, fica claro que a cidade é uma das personagens principais da trama. Não obviamente os clichês da Torre e dos namorados, dos cafés e museus e muito menos da Notre Dame. Ninguém melhor do que a própria escritora para descrever o ambiente em que Vernon – ex-proprietário falido de uma loja de vinis levado pelas circunstâncias a morar na rua – circula: “(...) estou indo em direção aos Champs-Elysées e sei que essa cidade vai me dar o que vim buscar, sou a vaca no abatedouro, sou a enfermeira que ficou surda aos gritos dos doentes por força da impotência, sou o imigrante ilegal que consome 10 euros de crack toda noite para trabalhar sem registro na faxina de um restaurante em Château Rouge, sou o desempregado de muitos anos que acaba de encontrar um trabalho, sou o traficante que se mija de medo a 10 metros da alfândega, sou a puta de 65 anos encantada ao ver seu cliente mais antigo chegar. Sou a árvore de galhos nus maltratados pela chuva, a criança que esperneia no carrinho, a cadela que puxa a coleira com força, a carcereira com inveja da vida despreocupada das prisioneiras, sou uma nuvem carregada, uma fonte, a noite abandonada que revê as fotos de sua vida pregressa, sou um beleléu em cima de um banco dependurado numa colina, em Paris”.
O livro alinha uma série de grupos sociais que tentam conviver a partir de um gosto único em comum, a cultura pop. A partir daí, o reacionário hipócrita que explora a esposa acaba surrado por neofascistas enquanto conversa com moradores de rua, de quem ele próprio sente ojeriza. Enquanto assistem ao desfile dos bem-sucedidos, pessoas solitárias denunciam o grau de falsidade das relações. No fim das contas, o que aparece é um tecido mal-ajambrado, cheio de marcas e cicatrizes, mas completamente não conformista. O livro mostra que a recusa à observação inerte leva à resistência e, por fim, à legitimidade. Com as óbvias variações, dá para dizer que essa é uma das marcas da literatura francesa contemporânea.
Vou mais longe: a disposição pelo arranjo falho, pelo convívio tenso e sobretudo a franqueza crítica têm feito a própria sociedade francesa compreender que, em um momento de ameaça “civilizatória”, é preciso saber que o voto em um hipócrita como Emmanuel Macron serve para preservar esse tecido falho, mas legítimo, e evitar que os fascistas, que não querem permitir convívios amplos, cheguem ao poder. Como as diversas instâncias da sociedade não vão fazer acordo com o establishment político, eleger uma frente cheia de falhas, mas estratégica e não fascista, fica mais assegurada. A literatura francesa contemporânea é parte desse acordo não conformista e vital, e A vida de Vernon Subutex é um exemplo forte dessa disposição. Sociedades que evitam instalar tensão em seus tantos grupos, produzindo assim apenas calmaria, parecem ter mais dificuldade para fazer essa tensão conviver junto em um momento de acordo urgente para preservar os mínimos padrões “civilizatórios”. Não digo que a França vá resistir o tempo inteiro ao fascismo contemporâneo (a Europa ocidental tem, a duras penas, conseguido resistir), mas ao menos até aqui soube unir tensões a favor do convívio. É precário, mas não naufragou.