A serpente sai da sua
décima terceira muda
estremecida e ereta.
– Um raio de pedra fóssil
de súbito vivo demais.
Líquido espanto:
degelo.
O poema acima, epígrafe desta resenha, é o primeiro que aparece em Degelo, livro da poeta lésbica catalã Maria-Mercè Marçal (1952-1998) que chega aqui, em nosso lado do oceano, pela tradução de Meritxell Hernando Marsal e Beatriz Regina Guimarães Barboza. Publicado em 1989, Degelo marca um recorte de poemas produzidos na década de 1980 nos quais o amor entre mulheres e mergulhos nos eixos da paternidade – da língua, da filiação, de gênero – são temas contínuos. Deixo todas as cartas na mesa neste primeiro parágrafo, sem teorias ou metáforas, pois aqui, entre o poema e a breve apresentação do livro, tudo está: 1) o degelo que vem, aos poucos, em cada verso de Marçal – que se perca a rigidez para que se encontre os espantos; 2) a presença do corpo – seja da mulher, seja do animal – como estrutura de sustentação desse processo de descongelamento; 3) a figura da poeta feminista e socialista que, com sua presença, reconfigura a ideia de tradição; 4) as linhas invisíveis entre territórios que ligam essas mulheres por meio de um processo de tradução feminista e atenta.
Voltar-se à poesia de Marçal é como acompanhar um constante movimento de levante, não necessariamente por qualquer escolha que se diga panfletária, mas, sim, por conta de sua capacidade de tumultuar desde a montagem do poema (operando um tipo de modos de usar da língua) até a sua temática e o seu ritmo. Um exemplo dessa vontade de motim generalizada é este trecho no qual a figura paterna, mesmo onipresente, não exerce poder de ação e torna-se um tipo de obsessão com o próprio ego, o mover-se do jogo de espelhos: “Pai gavião que me espreita desde o céu / e me cita no reino de seu nome, / me petrifica a sua vontade, feita assim na terra como no céu. / O meu sangue de cada dia / escorre para além de ti no dia de hoje / mas não sei me desfazer das velhas ofensas / e me espelho nos mais cegos devedores. / E me deixo cair na tentação/ de perseguir-te na sombra do meu mal”.
Esse olhar do gavião que encara e cerca está na chave de uma animalidade apontada por Jacques Derrida em seus estudos [nota 1], na qual a linha divisória entre o humano e o animal passa pelo olhar e ser olhado. No poema, Marçal dialoga com essa perspectiva do desconserto aludindo ao corpo do animal – em especial, aos olhos-potência dos gaviões –, como também ao corpo de um pai que se finca e se esvai conforme o manejo do eu lírico. Um olhar que se coloca entre certa violência e necessidade de nomeação – o pai a cita no reino etc. Aí também se pode aludir ao olhar de uma sociedade patriarcal, que tudo decide, tudo vê e tudo aponta. O corpo da mulher que se sobrepõe a esse Pai: “o meu sangue de cada dia escorre para além de ti (...)”; o corpo que persiste mesmo quando o homem e os códigos sociais o oprimem.
O livro está dividido em três partes: Daddy (referência à Sylvia Plath) [nota 2], Sombra de presa e Contrabando de luz. A última e a maior delas, composta por poemas de amor: “Que o amor retorne a crista arrebatada / e o bico voraz ao galo do dia. / E o sangue busque sulcos onde enfiar-se: / germe de canto, luta madura, estrema.” A sexualidade e as relações entre mulheres estão em todas as margens e centros dos poemas. De acordo com o texto de abertura do livro, assinado pelas tradutoras, em Degelo encontra-se uma retomada da presença de Mai, o primeiro amor de Marçal, que aparece, anteriormente, em La germana, l’extrangera (1985). Assim, a poeta inscreve na tradição da lírica catalã não só o corpo da mulher, mas também o corpo lésbico, com suas águas e afetos. A intimidade e o amor brilham marcadas no corpo e reverberam no desejo sem limite: “Volto em você, por você, ao vão cego/ de onde fugi sem poder esquecer, / desejo sem remédio, chaga raiz / agarrada, cravada corpo adentro”.
Marçal já foi traduzida para o português, no Brasil, por Ronald Polito – a ver, antologia organizada, em 2017, pela Lumme Editora – mas Degelo é um ponto de curva nesse processo de organização de sua obra, pois mostra-se em um projeto vinculado aos estudos de tradução feminista. Nesse contexto, uma genealogia feminista e de mulheres é posta para rodar pelos territórios: pode-se pensar nas várias referências e dedicatórias ao longo do livro e de sua obra – exemplos: Virginia Woolf, Adrienne Rich, Frida Kahlo – autoras, artistas, mulheres que se ligam a outras tantas e que são estendidas em sua arte e ação no mundo por meio de um projeto de tradução como esse.
Nos estudos da tradução feminista, a escola canadense trouxe uma espécie de busca pelo desarranjo dentro da continuidade da linguagem patriarcal na literatura e na sociedade. Entre suas teóricas, Luise von Flotow [nota 3] criou uma classificação de técnicas, utilizadas pelas tradutoras, que se divide em três categorias principais: suplementação, paratextos e sequestro. Penso, em especial, no sequestro não só como uma atitude tradutória de intervenção colaborativa na obra, mas também como um tomar-se para si rodeado por certa perda de rigidez – o movimento do degelo é também parte de uma apropriação. Dessa maneira, a nova leitura de Maria-Mercè Marçal que circula entre nós faz possível a volta de uma paisagem ancestral; a volta de um universo que se altera em sua matéria para que, só então, seja, de fato, erguido. Quando as águas escorrem, o que aparece tem a forma do espanto e de motim.
NOTAS
[nota 1]. Tema discutido em O animal que logo sou (Unesp, 2002).
[nota 2]. O poema Daddy foi escrito por Plath em outubro de 1962; e, posteriormente, publicado em Ariel (1965).
[nota 3]. Análise presente em Feminist translation: contexts, practices and theories (1991).