Em Vagantes (Tinta Negra, 2014), primeiro livro da Prêmio Nobel 2018 Olga Tokarczuk lançado no Brasil, temos um vasto elenco de personagens que se movimenta a todo momento. Nele, os rios são uma figura recorrente e os aeroportos são comparados a cidades-países “cuja localização é permanente, mas cujos cidadãos são variáveis”. Já no recém-lançado Sobre os ossos dos mortos, traduzido por Olga Bagińska-Shinzato, a paisagem não muda: há apenas uma pequena região coberta de neve e habitada por poucas pessoas. A escolha da escritora polonesa é explorar o mundo dos caçadores:
“Havia panelas com o cozido de repolho, linguiças encravadas em paus de madeira, espetos e garrafas de vodca que esfriavam em baldes. O cheiro másculo de couro curtido, escopetas lubrificadas, álcool e suor. Gestos de hegemonia, insígnias do poder”.
E isso leva à decisão formal do livro. Aqui temos um texto que oscila entre thrillers policiais nórdicos e o tom próximo ao da fábula (os personagens têm nomes como Pé Grande e Esquisito). O que acompanhamos é uma sucessão de assassinatos em uma região fria e isolada na fronteira com a República Tcheca. A protagonista é a única mulher em um mundo de homens. Notamos rapidamente a relação dessa mulher com o mundo e o corpo em que vive:
“Todo o mistério — o fato de sermos compostos de elementos da matéria e, ao mesmo tempo, estranhos a ela, isolados — jaz no contato com a terra, em sua ligação com o corpo. Os pés são nossos pinos da tomada”.
Janina Dusheiko (esse é o nome da personagem) é uma espécie de zeladora das casas da vila.
“A princípio, claro, monitorava as casas. Elas são, de certa forma, seres vivos que convivem com o ser humano numa simbiose exemplar.”
É estudiosa de astrologia e investiga o destino dos seus conhecidos em intrincados mapas astrais e comentários extensos sobre as posições dos planetas:
“Mas também fiquei pensando que, apesar de tudo, apesar de nossa fragilidade e ignorância, temos uma incrível vantagem sobre as estrelas — o tempo trabalha para nós, nos dando uma enorme possibilidade de transformar o mundo sofredor e doloroso em um mundo feliz e tranquilo. As estrelas é que estão presas em seu poder...”
Ela conhece os animais que atravessam a região, sabe o nome das árvores e domina a topografia do lugar. Assim como a autora, Dusheiko é vegetariana em um mundo onde carnismo, violência e patriarcado estão ligados. A sua teoria, e teorias ela tem aos montes, é de que os animais estão se vingando dos homens. Algo como A revolução dos bichos reeditada. A narradora propõe uma investigação na pequena vila gelada. Da sua invisibilidade de mulher velha faz sua força. Quem notaria uma mulher velha carregando sacolas para cima e para baixo, questiona a narradora durante a sua investigação.
Assim como seu compatriota Stanisław Lem, Olga Tokarczuk lança mão da forma de um gênero específico (nele, a ficção científica; nela, o suspense policial) para investigar o humano e sua relação com o mundo e outras formas de vida.
Narrado em primeira pessoa e permeado de citações de William Blake e até da banda The Doors, Sobre os ossos dos mortos é, também, um elogio à imaginação e ao desconhecido.
“Ali (na República Tcheca), o ser humano não age de acordo com as regras da razão, estúpidas e rígidas, mas segundo o coração e a intuição. As pessoas não matam o tempo se pavoneando com aquilo que sabem, mas criam coisas extraordinárias fazendo uso de sua imaginação”, diz a personagem para um dos seus poucos amigos, um tradutor amador de Blake para o polonês.
Há espaço para uma ode à ira como força transformadora:
“Não há dúvida de que toda a sabedoria deriva da ira, pois a ira é capaz de ultrapassar quaisquer limites”.
Nos livros policiais, as hipóteses são elaboradas pelo raciocínio do investigador. Tokarczuk, no entanto, faz a argumentação da sua narradora se voltar principalmente para o sistema predatório que domina a pequena vila.
O leitor logo descobre o porquê do tom da fábula, afinal é ela o gênero literário que dá voz aos animais para criticar a sociedade e as relações de poder.
Já de Blake, Olga Tokarczuk herdou a recusa aos autoritarismos. Em muito do que ela escreve, há a liberdade e a opressão sendo tematizadas. Há, também, o efeito de desestabilizar as certezas do leitor.
O final de Sobre os ossos dos mortos é catártico como um romance de suspense e nos deixa pensando em temas como violência e ditaduras. Pois é como disse a Senhora Dusheiko, os animais mostram a verdade sobre um país.