Resenha Olga Jacek Kolodziejski Divulgacao nov19

 

Em Vagantes (Tinta Negra, 2014), primeiro livro da Prêmio Nobel 2018 Olga Tokarczuk lançado no Brasil, temos um vasto elenco de personagens que se movimenta a todo momento. Nele, os rios são uma figura recorrente e os aeroportos são comparados a cidades-países “cuja localização é permanente, mas cujos cidadãos são variáveis”. Já no recém-lançado Sobre os ossos dos mortos, traduzido por Olga Bagińska-Shinzato, a paisagem não muda: há apenas uma pequena região coberta de neve e habitada por poucas pessoas. A escolha da escritora polonesa é explorar o mundo dos caçadores:

“Havia panelas com o cozido de repolho, linguiças encravadas em paus de madeira, espetos e garrafas de vodca que esfriavam em baldes. O cheiro másculo de couro curtido, escopetas lubrificadas, álcool e suor. Gestos de hegemonia, insígnias do poder”.

E isso leva à decisão formal do livro. Aqui temos um texto que oscila entre thrillers policiais nórdicos e o tom próximo ao da fábula (os personagens têm nomes como Pé Grande e Esquisito). O que acompanhamos é uma sucessão de assassinatos em uma região fria e isolada na fronteira com a República Tcheca. A protagonista é a única mulher em um mundo de homens. Notamos rapidamente a relação dessa mulher com o mundo e o corpo em que vive:

“Todo o mistério — o fato de sermos compostos de elementos da matéria e, ao mesmo tempo, estranhos a ela, isolados — jaz no contato com a terra, em sua ligação com o corpo. Os pés são nossos pinos da tomada”.

Janina Dusheiko (esse é o nome da personagem) é uma espécie de zeladora das casas da vila.

“A princípio, claro, monitorava as casas. Elas são, de certa forma, seres vivos que convivem com o ser humano numa simbiose exemplar.”

É estudiosa de astrologia e investiga o destino dos seus conhecidos em intrincados mapas astrais e comentários extensos sobre as posições dos planetas:

“Mas também fiquei pensando que, apesar de tudo, apesar de nossa fragilidade e ignorância, temos uma incrível vantagem sobre as estrelas — o tempo trabalha para nós, nos dando uma enorme possibilidade de transformar o mundo sofredor e doloroso em um mundo feliz e tranquilo. As estrelas é que estão presas em seu poder...”

Ela conhece os animais que atravessam a região, sabe o nome das árvores e domina a topografia do lugar. Assim como a autora, Dusheiko é vegetariana em um mundo onde carnismo, violência e patriarcado estão ligados. A sua teoria, e teorias ela tem aos montes, é de que os animais estão se vingando dos homens. Algo como A revolução dos bichos reeditada. A narradora propõe uma investigação na pequena vila gelada. Da sua invisibilidade de mulher velha faz sua força. Quem notaria uma mulher velha carregando sacolas para cima e para baixo, questiona a narradora durante a sua investigação.

Assim como seu compatriota Stanisław Lem, Olga Tokarczuk lança mão da forma de um gênero específico (nele, a ficção científica; nela, o suspense policial) para investigar o humano e sua relação com o mundo e outras formas de vida.

Narrado em primeira pessoa e permeado de citações de William Blake e até da banda The Doors, Sobre os ossos dos mortos é, também, um elogio à imaginação e ao desconhecido.

“Ali (na República Tcheca), o ser humano não age de acordo com as regras da razão, estúpidas e rígidas, mas segundo o coração e a intuição. As pessoas não matam o tempo se pavoneando com aquilo que sabem, mas criam coisas extraordinárias fazendo uso de sua imaginação”, diz a personagem para um dos seus poucos amigos, um tradutor amador de Blake para o polonês.

Há espaço para uma ode à ira como força transformadora:

“Não há dúvida de que toda a sabedoria deriva da ira, pois a ira é capaz de ultrapassar quaisquer limites”.

Nos livros policiais, as hipóteses são elaboradas pelo raciocínio do investigador. Tokarczuk, no entanto, faz a argumentação da sua narradora se voltar principalmente para o sistema predatório que domina a pequena vila.

O leitor logo descobre o porquê do tom da fábula, afinal é ela o gênero literário que dá voz aos animais para criticar a sociedade e as relações de poder.

Já de Blake, Olga Tokarczuk herdou a recusa aos autoritarismos. Em muito do que ela escreve, há a liberdade e a opressão sendo tematizadas. Há, também, o efeito de desestabilizar as certezas do leitor.

O final de Sobre os ossos dos mortos é catártico como um romance de suspense e nos deixa pensando em temas como violência e ditaduras. Pois é como disse a Senhora Dusheiko, os animais mostram a verdade sobre um país.