Jorge.de.Sena reproducao

 

 

Poesia portuguesa é um flanco ainda restrito no mercado, poucas editoras nele investem. Mas é possível encontrar bons volumes no Brasil, como os de Manuel António Pina, Adília Lopes, Herberto Helder, Sophia de Mello Breyner, Mário Sá-Carneiro. Há outros, claro, mas saltam aos olhos as boas edições dos poetas canônicos. A esse grupo vem se somar Jorge de Sena (1919-1978; foto), que acaba de ter antologia publicada pela Bazar do Tempo e organizada por Gilda Santos (UFRJ).

O título, Não leiam delicados este livro, é adequado ao corte proposto pela antologista – um corte "aboslutamente pessoal", como ela mesma diz. Saltam aos olhos os poemas que mostram um interesse pela linguagem que imprime nela as turbulências da primeira metade do século XX sem recair em visada panfletária ou refém das misérias da sociedade. Concilia tradição e a demanda política de seu tempo. Essa conciliação ocorre pela escolha da vida contra a morte, opção que o aproxima de vários de seus contemporâneos.

Sena foi talhado pela experiência do regime de Salazar e, num contexto continental, da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra. Também é marcado pelo exílio no Brasil e depois nos EUA, e pela retirada forçada de uma carreira na Marinha. Tudo isso comparece em sua poesia. A urgência política de seu tempo envolve o entendimento de que a “razão da vida não é outra senão viver” (Erich Fromm), tônica do pós-Segunda Guerra que habitará as artes em diferentes formas.

A tradição chega por vários caminhos mas o farol maior, na língua portuguesa, é Camões (e não Pessoa). Os Lusíadas é um livro centrado numa aventura, viagem ou travessia que ocorre pelo mar. No posfácio, o ensaísta Eduardo Lourenço lembra que a expulsão da carreira na Marinha siderou o poeta, pois para ele o mar seria o teatro ideal para sua encenação de liberdade. A travessia, na vida e na poesia, ocorrerá, então, pelo corpo e pela linguagem, na conversa bem conversada entre o excesso de vida e uma linguagem arquitetada, apolínea. O corpo não espera, não há limites para a vida humana, a respirada / suada, segregada, circulada, / a que é excremento, sangue, a que é semente / e é gozo e é dor e pele que palpita / ligeiramente fria sob ardentes dedos. A crença na vida, em Jorge de Sena, é uma espécie de metafísica. É uma injustiça a morte. É cobardia / que alguém a aceite resignadamente – como aceitar a morte se experimentamos afetos? Projetamos a nós mesmos ao infinito em nossos descendentes, segundo o poema. Não se trata, portanto, de regrar a experiência com a linguagem, mas o contrário: escolher as melhores palavras/estruturas para descortinar os traços eróticos, viscerais e afetuosos da vivência. No real e nos poemas, ser responsável é fazer escolhas: de um lado, a circunstância (pessoal, coletiva, que escolhe lado nas disputas); do outro, selecionar, dialogar, torcer as tradições da literatura, pintura e música.

Uma pessoa também pode se projetar ao futuro compondo obras, como informa o poema Camões dirige-se aos seus contemporâneos. Sobrevive-se pelo corpo do poema. É deste jeito, para além de sua numerosa descendência, que Jorge de Sena está entre nós no ano de seu centenário.