“Meados dos anos 1970 no deteriorado South Bronx. Para quem deseja se divertir, a única forma de recreação saudável é ir às festas do DJ Kool Herc, que acontecem em um espaço situado à Av. Sedgwick, 1502. Apesar de já ser uma lenda no bairro, Herc continua treinando e testando novidades para deixar seus shows ainda mais animados.”
Nas festas da Avenida Sedgwick tem início – ao menos oficialmente – a cultura hip hop. Suas origens, no entanto, remetem à Jamaica, país de origem do DJ Kool Herc. Nas festas jamaicanas, ocorridas ao ar livre e animadas por equipes móveis de som (as famosas sound systems), improvisações vocais rimadas eram praticadas sobre bases de rhythm and blues. Ali, era possível encontrar alguns dos elementos que, anos mais tarde, causariam impacto na cultura global, partindo das quebradas do Bronx para o centro de Manhattan, e conquistando espaço no mercado internacional.
Em Hip Hop Genealogia (Hip Hop Family Tree, no original), Ed Piskor explora, com admirável precisão de detalhes, os anos de formação e consolidação do hip hop. A editora Veneta e o selo Sumário de Rua, que publicaram o primeiro número da HQ em 2016 com tradução de Mateus Potumati, lançam agora o segundo volume da série, traduzido por Amauri Gonzo.
Ao recriar o lendário universo do Bronx dos anos 1970, Ed Piskor demonstra como as house parties de Kool Herc foram fonte de grande inspiração para um ávido público juvenil. Ao tocar com diferentes cópias de um mesmo disco, Herc passaria a usar os breaks de suas canções favoritas para criar repetições em loop, produzindo um explosivo fenômeno. Para aumentar a complexidade de sua festa, convidaria um amigo para assumir o microfone na posição de MC.
Não demoraria muito até que um núcleo talentoso começasse a criar a partir dos alicerces construídos pelo DJ. Entre os novos talentos estavam nomes como Grandmaster Flash, que aperfeiçoou as técnicas de Herc e ganhou popularidade como DJ de festas de rua; Grandwizard Theodore, pupilo de Flash que inventou o scratch ao “arranhar” discos por acidente; e Afrika Bambaataa, DJ famoso por sua invejável aparelhagem e pelos sets musicais que marcaram a história do hip hop. Ao perceber o potencial afirmativo dessa nova cena, as gangues que atuavam no Bronx começaram a tomar um caminho distinto, canalizando o clima de disputas para as batalhas de rap. O próprio Afrika Bambaataa havia sido um temido líder da maior gangue do bairro.
Ed Piskor detalha como, pouco a pouco, a cultura hip hop foi tomando forma. Para isso, faz uso de uma imensa quantidade de personagens, divididos entre DJs, MCs, empresários, grafiteiros, dançarinos de breakdance (os b-boys e as b-girls), além de algumas breves e divertidas aparições de artistas posteriormente consagrados, como Keith Haring e Jean-Michel Basquiat.
Nascido em 1982 no estado da Pensilvânia, Ed Piskor ficou conhecido através de sua parceria com o veterano quadrinista Harvey Pekar, desenhando alguns números da série American splendor. O duo publicaria ainda dois romances gráficos: Macedonia (2007) e Os beats (lançado em 2010 no Brasil). Mas a consagração de Piskor viria com Hip Hop Family Tree, publicada primeiro em capítulos na revista Boing Boing, e depois reunida em livros pela Fantagraphics, a partir de 2013. Até o momento, a editora estadunidense já publicou quatro volumes da série, cobrindo o período de formação e consolidação do hip hop nos Estados Unidos, de 1970 a 1985.
Ganhador de um Eisner Awards, o mais importante prêmio dos quadrinhos, Piskor conquistou a admiração dos artistas da cena. No Brasil, a recepção não foi diferente. A apresentação do primeiro volume, que cobre a década de 1970 e vai até 1981, ficou a cargo do rapper Emicida.
“Ed Piskor é um nerd – um gênio nerd que eu adoraria conhecer. Ao ler Hip Hop Genealogia, eu só pensava que ele uniu minhas duas paixões adolescentes em um só material. Seu livro é um trabalho minucioso, de precisão cirúrgica, feito com o amor e o talento que só um fã autêntico é capaz de dedicar ao objeto de sua admiração. Talvez, para as novas gerações, seja difícil imaginar um mundo sem a cultura hip hop. Na introdução da minha primeira mixtape, eu disse ‘quando os caminhos se confundem, é necessário voltar ao começo’. Vivemos um tempo confuso, estranho, e nada melhor para restabelecer nossos valores do que olharmos para os primórdios e nos lembrarmos do caminho certo”, escreveu o rapper paulistano.
Conservando o humor e o ritmo ágil do livro anterior, o segundo volume tem início no ano de 1981, estendendo-se até 1983. Dessa vez, os rappers são tratados como verdadeiros pop stars, com o hip hop explodindo no mainstream e invadindo as respeitáveis lojas de discos e os clubes descolados de Manhattan. Hip Hop Genealogia 2 exibe a criação de clássicos como Planet rock, de Afrika Bambaataa, e The message, de Grandmaster Flash and the Furious Five, além do surgimento de estrelas como NWA, Beastie Boys, Ice-T e Public Enemy. O volume conta com introdução de Charlie Ahearn, diretor de Wild style (1982), filme pioneiro ao retratar o surgimento do hip hop, e apresentação do jornalista Ramiro Zwetsch.
Assim como para Emicida, a ligação entre hip hop e revistas em quadrinhos sempre foi explícita para Ed Piskor. As escolhas empregadas em sua composição evidenciam algumas de suas principais referências estéticas, entre elas os gibis de super-heróis – sobretudo aqueles publicados no período em que o hip hop despontava. Por isso, além do rigoroso trabalho de pesquisa e das incríveis ilustrações, é possível que o zeitgeist captado por ele seja o fator determinante no pronto reconhecimento de sua produção.
As edições da Veneta e da Sumário de Rua trazem versões originais das letras utilizadas no decorrer das histórias, além de notas, bibliografia, discografia e posfácio ilustrado. Para ansiedade dos leitores brasileiros, os dois últimos volumes de Hip Hop Genealogia ainda estão sem previsão de publicação.