“Mar calmo nunca fez boa marinheira”.
(Provérbio aprendido numa aquarela de Carolina Itzá)
Maréia, de Miriam. Índigo romance, de águas espelhadas e caminhos bifurcados. Uma grande bifurcação, metonímica das Grandes Navegações, organiza o prumo do enredo, nos conduzindo por marés dissonantes – dessas que misturam calmaria e tempestade em instantes de busca e descoberta.
O segundo romance da escritora paulistana Miriam Alves é a mais recente partilha de uma trajetória literária de aproximadamente quarenta anos, cujo início remonta à sua presença junto às movimentações intensas do coletivo cultural Quilombhoje – vanguarda negra que se reuniu pela primeira vez no fim da década de 1970 para pensar estética, política, recepção, editoração e distribuição, produzindo literatura, conceitos, táticas de existência cultural e também uma comunidade leitora, sendo a antologia Cadernos negros um dos seus frutos mais vivos e duradouros. Miriam emerge neste contexto político-artístico. Sua produção múltipla inclui poesia, conto e romance. Neste último gênero ela estreou com Bará: na trilha do vento (Editora Ogum’s, 2015).
Maréia (Malê, 2019), como o nome já anuncia, tem por matéria-prima semântica as águas salgadas e por método compositivo a dupla via – também presente na conjunção de mar e areia que nomeia a protagonista homônima. Através dessa dupla via, vamos acompanhando as trajetórias pareadas de dois núcleos de personagens, ambos herdeiros de sistemas de mundo que os atravessa, de ancestralidades próprias e de urgências históricas.
Como no movimento do mar, as águas vão regendo a vida das personagens em torno de um sábio fundamento – “tudo que vai, volta” – seja em forma de resíduo, de carma, de saudade ou de transformação de estados sólidos e estáticos. Assim, a primeira imagem impactante do romance já se mostra nas suas frases iniciais: o lastro de água salgada que percorre teimosamente o corpo de Alfredo, herdeiro do poder de mando que forjou a história da sua família. Águas incômodas, que ardem e constrangem, brotando do seu corpo para além do seu controle e vontade. “Suor teimoso em fino filete, como um pequeno rio, brotava na região da nuca, escorria lento no meio das costas, desaguando entre as nádegas, irradiando para o corpo umidade fria, que denunciava silenciosamente suas inquietações mais recônditas. Acostumara-se a não evidenciar emoções; o único indício de seu estado emocional corporificava--se naquela transpiração inconveniente”. (p. 14). Este suor patológico, sintoma exterior que torna visível e liquefato os dilemas de uma interioridade em crise com seus espelhos, é uma metáfora também para a herança colonial de quem atravessou o mar por vontade própria e escravizou: “Você é um Menezes de Albuquerque. Nunca se esqueça disso. Temos muita história. Honre!” (p. 14).
Maréia é uma jovem negra que pertence a uma família de mulheres, pois os homens foram levados para o “país do oceano”, como diria Eyabe, inesquecível personagem de Léonora Miano em A estação das sombras [nota 1].Tal como no romance da escritora camaronense, aqui também coube às mulheres recriar os fios partidos daqueles que ficaram para sempre no intermédio, entre seu lugar de origem e um cais que nunca chegou... interrompidos no fundo mar: “Mar é o reino líquido que resguarda muito de nós” (p. 54). Mas a kalunga [nota 2] em Maréia remete também à memória do mar como locus de insubmissão e revolta, pois certos caracteres de vô Marcílio podem lembrar João Cândido (1880-1969), o aguerrido Almirante Negro. Vô Marcílio é um griot [nota 3] cujas histórias partem do mar, e quando as conta, ao mar retorna: “‘Pensa que a vida de marinheiro sempre foi assim? Foi não. Não mesmo!’ – O modo peculiar de descrever prendia a atenção dos ouvintes. ‘Nos tempos da armada imperial...’ – interrompia-se, numa longa pausa, a religar os vários fios partidos, o olhar perdia-se nos contornos da baía da Guanabara, como restabelecendo elos, levado só pela força dos pensamentos, como correntes marítimas. Reorganizava memórias ouvidas, vivenciadas, reavivava memórias que se apagavam nas memórias alheias, às vezes as palavras emudeciam, os olhos marejavam. Depois de matutar, simpático e tagarela, narrava. ‘Quem é das águas dela não se perde. Nelas acha sempre o caminho, navegando no sentido horário ou anti-horário, dependendo de aonde se quer chegar. Saber tocar o barco, aguentar o leme nas tempestades e fortalecer os músculos... Já falei das Casas dos Zungus e da Tia Fé? Falei ou não falei?’” (p. 49-50).
Se os homens da família compartilham o mar, as mulheres compartilham a música, juntas formam uma orquestra de chorinho, que depois se desdobrará em ACUENDA, Associação Cultural Encanto das Águas. O domínio de Maréia é o sopro, metáfora, quiçá, para aquela brisa que o mar nos verte em vida. Soprando a flauta transversal dourada, “sentiu a mente flutuar, deixou-se levar pela magia do som, imaginava dialogar em dueto com o bisavô, improvisou uma melodia. A sonoridade a fazia relembrar os relatos de Maria Dorotéia Nunes dos Santos, chamada carinhosamente de vó Déia, transmitia à neta, detalhes sobre sua ascendência, para que a memória não esmaecesse na bruma branca do esquecimento” (p. 27).
A narrativa se esparrama pelo cotidiano, conflitos e projetos destes dois núcleos de personagens, Alfredo e Maréia, e seus afetos correlatos. Nesse ínterim, abre-se espaço na ficção para refletirmos sobre a experiência histórica da branquitude no Brasil, pois este é um ponto reflexivo e crítico do romance.
Por fim, Maréia segue levada pela música, criando e combinando suas próprias claves de sol em meio a marés tumultuadas, mas revigorantes. “Mar calmo nunca fez boa marinheira”, lembra o provérbio, e isso também Maréia nos ensina.
NOTAS
[nota 1]. Romance traduzido e publicado pela Pallas em 2017.
[nota 2]. A palavra “kalunga”, com “k”, é uma referência importante na cosmovisão diaspórica. Segundo o Dicionário Quimbundo-Português, de Antônio Assis Jr., significa algo eminente, insigne, grande, infinito; mas também o oceano, o mar, a imensidade, o vácuo, o abismo; e ainda infortúnios, desgraça, peste, calamidade. Também pode aludir ao deus da morte, à própria morte, ou à eternidade; entre outros significados.
[nota 3]. Em partes da África, griot é quem preserva e transmite as histórias e canções de seu povo.