O novo livro do crítico literário paulista e professor da USP Alfredo Bosi, Ideologia e contraideologia (Companhia das Letras, 448 págs., R$ 58), é coisa rara no atual ambiente acadêmico– e no meio intelectual brasileiro em geral. E é incomum não pelo tema ou pelas referências utilizadas, mas sim pela capacidade do autor, que hoje está com 73 anos, de aliar ao conhecimento especializado – em seu caso, o literário – ao saber mais geral, que inclui campos como a filosofia, a sociologia, a história, a política e, talvez com menos competência do que nas demais áreas, a economia. Essa tentativa de compreensão integradora, comum no Brasil entre intelectuais polímatas de meados do século passado, virou item de luxo numa época que valoriza sobremaneira o conhecimento dos chamados especialistas.
Ideologia e contraideologia é uma obra realmente ambiciosa e cobre praticamente seis séculos de debates a respeito do termo “ideologia”, que foi utilizado pela primeira vez na França, em 1796, por Destutt de Tracy. Logo em seguida, Napoleão Bonaparte classificou de Tracy e seus companheiros ideólogos como “deformadores da realidade”. A partir daí, o vocábulo não parou mais de se desenvolver e permitir os mais diversos – e até contraditórios – usos. Para tratar da complexa trajetória e das mais diferentes significações que a palavra foi recebendo, A. Bosi revisitou diversos escritores e pensadores de diferentes vertentes teóricas: Montaigne, Francis Bacon, Locke, Montesquieu, Condorcet, Hegel, Durkheim, Simone Weil, Antonio Gramsci, entre muitos outros, são analisados pelo autor. No Brasil, destaca-se no estudo o pensamento de Celso Furtado, Joaquim Nabuco, Lindolfo Collor e o obrigatório Machado de Assis.
A abrangência do estudo de Alfredo Bosi, que é membro da Academia Brasileira de Letras, coloca-o na linha de grandes ensaios como Rumo à estação Finlândia, de Edmund Wilson, sobre a história e desenvolvimento das ideias socialistas, ou das obras acerca da história do pensamento político escritas por Isaiah Berlin. Num país como o Brasil, que sofre de confusão ideológica crônica desde sua formação (vide nossa abstrusa configuração políticopartidária), esse livro cumpre o papel fundamental de pelo menos tentar colocar cada ideia em seu lugar. Obviamente o longo ensaio é marcado – e não poderia ser de outro modo – pelas idiossincrasias político-ideológicas do autor, o que não desmerece em nada a obra, mas que, em certos momentos exige por parte dos leitores um olhar atento e crítico.
No livro, A. Bosi privilegia, por um lado, a acepção de “ideologia” proposta por Karl Marx e Friedrich Engels em A ideologia alemã, obra em que eles investem contra a visão liberal de sociedade como mera emissária dos escusos interesses da elite burguesa – uma forma de falsa consciência que se pretende universal; e, por outro, a vertente sociológica e historicista de caráter marcadamente weberiano, que analisa as diferentes ideologias como “visões de mundo” que podem, de forma complexa e conflituosa, existir numa mesma sociedade e num mesmo período histórico. Entre as duas visões apresentadas, a primeira se sobrepõe: A. Bosi, em diversas partes da obra, parece querer nos mostrar que a ideologia é principalmente uma tentativa de camuflar interesses particulares e mesquinhos, coonestando-os e vendendo-os como a única e universal realidade possível. Já a contra-ideologia, para ele, é sempre bem-intencionada e voltada para o bem de todos.
SENSO COMUM
Apesar da competência intelectual indiscutível, o autor cai no mais puro senso comum em alguns momentos, como é normal numa obra desse alcance e amplitude. Sua crítica à economia globalizada contemporânea, que ele classifica e generaliza como neoliberal, padece de falta de conhecimento técnico e de simplificação excessiva. Outro ponto discutível é a noção, que permeia quase todo o longo ensaio, de que toda a rica histórica do pensamento liberal pode ser resumida na defesa da propriedade privada e do livre mercado e que se trata simplesmente de uma falsa consciência que na verdade visa exclusivamente à defesa do status quo. Em
um dos capítulos mais interessantes do livro, A. Bosi discute a concepção que “ideologia” assume no pensamento do sociólogo Karl Mannheim, que acreditava que uma argumentação ideológica não é sempre uma mistificação ou a tentativa de defender os interesses de uma determinada classe social.
Um conveniente exercício intelectual para o leitor interessado em analisar visões opostas sobre história do pensamento político é cotejar o livro de Bosi com uma obra muito importante e menos lida do que merece: trata-se de O liberalismo, antigo e moderno, publicada em 1991, do já falecido crítico literário e diplomata José Guilherme Merquior. A partir dessa comparação fica claro que o conceito de “ideologia” é, digamos, muito “poluído” pela variedade de acepções que recebeu durante a história.
Em um dos capítulos mais esclarecedores de Ideologia e contraideologia, o autor deixa claro que, em se tratando de arte, a ideologia nunca deve servir como explicação total, mesmo que seja parte importante da concepção do artista. A densidade e complexidade de um bom romance, por exemplo, transcenderia a mera tentativa exclusivamente persuasiva de qualquer discurso ideológico que, por natureza, acredita-se portador de “verdades universais”.
Eduardo Cesar Maia é jornalista e doutorando em teoria literária.
É tortuoso o caminho que leva à ideologia
- Detalhes
- Categoria: Resenhas