Ela trança os cabelos, amarra a bainha do vestido e sai caminhando por sua ilha, buscando as ervas, as flores e as raízes que pode usar em suas poções. Leões e lobos amansados a observam de perto. Sua destreza com a feitiçaria é resultado de anos a fio de trabalho árduo, desvendando aos poucos suas aptidões por meio de tentativa e erro e afiando-as nas habilidades temidas até pelos grandes deuses. Visitantes são raros; mas, quando aparecem, correm o risco de serem impiedosamente transformados em porcos.
Circe é considerada a primeira feiticeira da literatura ocidental, e a prova está no Canto X da Odisseia: é onde aparece brevemente como a bruxa que enfeitiça os bravos guerreiros que acompanham Odisseu e os metamorfoseia em porcos. Confrontada pelo herói grego, ajoelhada perante sua espada, Circe implora-lhe para ficar na ilha de Eana como seu amante. Tudo que Homero menciona a seu respeito vem da perspectiva de Odisseu, que narra o episódio de maneira a exaltar a sua coragem por enfrentar uma das mais poderosas feiticeiras do mundo. E mais: não só ele a confronta, como a subjuga por completo.
Não se trata de qualquer história. Com quase três milênios de existência, o épico de Odisseu e o mito de Circe estão na raiz da narrativa ocidental, integram nosso imaginário e seguem exercendo fascínio, pois continuam a alimentar nossas perguntas sobre os mistérios humanos. Revisitar Circe em Eana pode nos abrir novas janelas de interpretação e permite que a examinemos a partir de pontos de vista inéditos. Neste processo, o ato de transformar homens em porcos pode, por exemplo, passar de crueldade absurda à medida de autodefesa. E uma temível e misteriosa feiticeira é capaz de se revelar como uma mulher em busca de sua voz e de seu lugar no mundo.
Circe realiza essa magia ao reverter completamente a perspectiva de narrativa. O romance, escrito pela autora e professora norteamericana Madeline Miller e traduzido por Isadora Prospero, conta a história da feiticeira, pela feiticeira, em uma releitura que é também operação de resgate. Miller parte de um movimento mais amplo de repensar a mulher em narrativas tradicionais. Ao preservar a emporalidade do mito original em sua releitura, a autora conecta Antiguidade e século XXI em um diálogo marcado por circunstâncias históricas da condição feminina que reverberam até hoje. Miller liberta Circe de sua posição como figura secundária da gloriosa expedição de Odisseu para colocá-la bem no centro, estabelecendo um protagonismo original à deusa, bruxa, ninfa – e mulher.
Homero descreve Circe como “fera deusa com voz humana”, e Miller parte dessa caracterização para construir sua personagem. Presa entre a divindade e a mortalidade, sem soar como deusa – e tampouco completamente como humana – Circe passa anos sujeita aos caprichos de sua família e do Olimpo. Depois de usar magia para transformar, por ciúmes, a ninfa Cila em um monstro marínho, ela é exilada para a ilha de Eana. Lá, atreve-se a ir além do isolamento que lhe foi destinado e descobre a feitiçaria como um caminho para finalmente fazer o seu mundo. Sozinha em seu exílio, Circe realiza a maior metamorfose de todas – sua transformação de ninfa calada e reprimida em mulher que enfrenta as vontades dos deuses. Esse longo processo é o que permite a Miller se aprofundar nas emoções e na psicologia de sua personagem, através de episódios como o estupro sofrido nas mãos de marinheiros que a encontram em Eana e se aproveitam de sua solidão (o momento em que inaugura seu feitiço) e a criação de seu filho Telégono, nascido após Odisseu deixá-la, seguindo seu tortuoso caminho rumo a Ítaca.
Maternidade, abuso sexual e poder são investigados sob uma ótica inexistente na Antiguidade Clássica, pois leva em consideração desigualdades de gênero tanto na construção de narrativas quanto nas posições ocupadas por mulheres. Circe, afinal, representa com louvor o medo masculino de mulheres no poder: um aviso lançado em todas as direções pelos ventos de Éolo de que o poder feminino só pode prejudicar homens. No caso, transformando--os em porcos. Desde os primórdios das civilizações, feiticeiras e bruxas são, como aponta a historiadora Michelle Perrot, bodes expiatórios das ansiedades e apreensões do patriarcado quanto à independência, autonomia, sexualidade e subversão das mulheres. Podemos interpretá-las, ainda, como faz a escritora e ativista Silvia Federici, que conceitualiza a caça às bruxas e a própria imagem da feiticeira como formas de deslegitimar a posição da mulher na sociedade capitalista, exercer controle sobre seu corpo e seu trabalho e, através da perseguição às acusadas de bruxaria, silenciá-las e forçá-las à obediência. Usar a força da palavra para levantar novas vozes e, assim, rever os enquadramentos dados a determinadas histórias é um gesto potente, que nos ajuda a pensar nosso próprio tempo.
Quando a feiticeira encontra Odisseu em Circe, ela não se ajoelha e muito menos pede misericórdia. O embate é travado entre iguais – ele é sagaz, mas ela não é boba. Odisseu é um elemento importante de sua narrativa, embora não o único, e a busca dela por um lugar no mundo prossegue bem depois de terem passado um ano juntos. Com Miller, mergulhamos fundo em uma Circe que não é nem tirana vingativa e sedutora, nem mocinha inocente, mera vítima das circunstâncias. Ela continua a enfeitiçar homens para que virem porcos; dessa vez, porém, sabemos um pouco mais sobre o que a levou até lá e ficamos, então, com a pergunta: seria ela tão impiedosa assim?
Circe não quer que nos esqueçamos da Odisseia. Miller e, quem sabe, a própria Circe parecem preferir que fiquemos atentos às perspectivas e vozes deixadas de fora há milênios que, agora, ousam se fazer ouvidas.