Resenha Eunice Arte sobre reproducao set.19

 

Reunida pela primeira vez de forma completa, a obra poética de Eunice Arruda — iniciada em 1960 na Coleção dos Novíssimos de Massao Ohno com É tempo de noite — será publicada pela editora Patuá neste semestre sob o título Visível ao destino.

Antes de falecer, em 2017, Eunice deixou como última publicação seu Debaixo do sol, de 2010, que de certa forma funciona como roteiro de leitura para sua obra completa. Sobre este livro, à época da primeira publicação, a crítica e poeta Beatriz Amaral aponta ser exatamente nesta faixa de depuração de linguagem e transformação semântica que percorre a poesia de Eunice, cujo olhar sensível e crítico jamais abandona a concisão.

A estética da concisão, percebida como procedimento pilar dessa poesia, é ratificada de modo mais explícito em Há estações (2003) e Olhar (2008), ambos compostos apenas por haicais. Estruturam-se, esses livros, pela passagem de tempo entre estações (meio externo) como espelho ou mímese da transformação interna, mesmo quando de aparente imobilidade — sugerida pelo vocábulo olhar, título do segundo livro de haicais, que indica essa aragem entrando / Pela janela entreaberta.

Trata-se de linguagem que não entrega. Alude. No melhor conceito de metáfora, explicado por Jorge L. Borges em seu Esse ofício do verso. Nele, o argentino afirma qualquer coisa sugerida, em poesia, ter muito mais valor que uma coisa apregoada. É nesse sentido que a poética de Eunice Arruda constrói suas camadas de embaçado entre os sentidos, como podemos ver em a vida precisa / de telhados / pombas / olhando / a vida é ave / ávida. E precisa (Precisa).

Essa espécie de nuvem entre pálpebra e retina, entre presente e passado, entre o livro de hoje e o poema de ontem, revela a partir do que oculta. Há uma quantidade de alusões que, à visão do leitor, se expandem como se os sentidos parecessem mais possíveis fora do que dentro do poema: Amo o que é / sonho / fumaça // O que passa (do poema No dia).

O olhar distante — espécie de anjo que registra (como diria Ana Cristina Cesar) — ao mesmo tempo carrega a impossibilidade de absorção do transitório (tema sempre tensionado na escrita de Eunice) como também a temática dos sonhos. Muito presente em seus versos desde o primeiro livro, esse sítio do inconsciente dissolve a realidade fugidia em um espaço fragmentado por flashes e palavras, cenas e sílabas, vida e página. É na realidade que o MEDO / cai / não / ensaia; por isso a vastidão do sonhar ilimitado é preparada no sono // (quando) as portas se // abrem.

Se abrem como quem sai e explora e como quem permite entrar. O amadurecimento poético de Eunice Arruda também é expresso por certas alterações de suavidade e encantamento. Se nos primeiros livros há um peso maior em relação ao véu obscuro da vida — mais melancólico e entristecido Quando as lágrimas já / se tornaram nos olhos / o único brilho —; ao passo que sua poesia avança, podemos observar que a própria tristeza, posto que bela, é também colocada nas estrias do poema, nesse lugar de “entrenuvens”, cambiante entre o dito e o não dito.

É o que vemos no poema Lendas (de Risco, 1998), ao pontuar não desilusões, uma vez que não chegaram a existir, mas anti-ilusões. O eu lírico se coloca depois do vivido, com olhar externo diante de si mesmo, deposto de emoções; fala do fogo como quem passa pomada na cicatriz, não como quem busca água para um incêndio. O amor mostrou a face / em sua face / naquele verão / fortes chuvas molharam a terra / e a colheita se fez farta exata / harmonia / entre o que é fome e o que sacia.

“Os grandes temas”, ao contrário do que anuncia o poema, são tratados pela poesia de Eunice Arruda, porém fazendo sua inclusão universal a partir do particular. Apesar de o eu lírico dizer Eu sinto / que os grandes temas recusam / minhas mãos cheias de embrulho, é por meio das cenas menores, da interioridade individual, que eles se revelam. Mais à frente, o poema diz que os dias mostram suas sobras, feito cinzas dos grandes temas; e é na aspiração dessas cinzas que a matéria de poesia se transforma do macro para o micro — que tornará a ser todo a partir da potência que contêm. É saber que é função do poeta ajustar o olhar e ver um tanto de mar em cada poça d’água.

A valoração do transitório, conforme já foi dito, é importante recurso para o entendimento da poesia completa de Eunice Arruda. Em rápida busca no YouTube, podemos encontrar a sua voz lendo que É missão de / quem escreve / apenas eternizar o que foi/ breve. A leveza da linguagem contrasta com a tensão temática — e é nessa tensão que a poesia se instala. Poesia que discute seu fazer corporificando os poemas (em Trato), tratando-os como filhos cujas carícias por vezes aceitam o cerco, às vezes se afastam no crepúsculo. Conviver com eles — poemas como filhos — ao redor da mesa impondo silêncios intransponíveis, até mesmo hostis. É tentar ler as linhas da vida entre as páginas de suas mãos. E aceitar que demora (sim, demora), mas chega a hora / em que eles nos abandonam.