Quando eu penso em Romã, a primeira memória que me chega é a da ênfase na língua: no termo, no órgão, naquela de dizer tudo e de molhar a cavidade vital. Não contei as ocorrências desta palavra, mas tenho a viva sensação dessa presença, que integra o léxico passional do novo livro de Júlia de Carvalho Hansen. Desvairadamente, ciumento, cu, fluidos, açúcar, disputa, chupar, essas também estão lá. Sabemos dos seus substantivos, e a poeta reforça em versos: “há anos estou dizendo a mesma coisa: / carta, estrela, destino, dentes e cavalos”. Um novo tom, porém, uma nova permissividade, habita esta publicação, algo que a dedicatória nos antecipa: o eu ardeu no íntimo. É inevitável pensar no contraste com seu livro anterior, Seiva veneno ou fruto, lançado em 2016, assim como também é bonito de ver o que permanece como o coração do ofício nesta escrita.
Júlia já disse que Seiva... é o livro que sempre desejou escrever quando, aos 12 anos, decidiu que seria poeta, e Romã é o que nunca se deixaria realizar naquele momento. Seiva... oferece a concisão da aprendizagem, é um livro miúdo, de poda, da centralidade espiritual, que vai da raiz ao buraco negro. Já Romã é um livro desmedido, de sumo, que escorre decididamente e deseja brilhar no escuro. Nessa transição, a autora se move dos exercícios das visões aos exercícios do tátil, não como mera substituição, mas como um encarnar-se, como um tirar proveito de todos os sentidos: “A tua presença me ativa a kundalini / alcançando a elevada onisciência / de uma xota quente / até a lombar pulsando.”
Ambos são frutos editoriais da Chão da Feira, possuem em comum o esmero e paratextos que não são adornos. No caso deste lançamento, epígrafes que indicam as vozes que acompanham a escritora, a nada inocente palavra poemas abaixo do título tão logo se chega a primeira página, o colofão enquanto contracapa e a dedicatória de um livro a dedicar-se a quem o ama. Além disso, aprimora-se o esticar e retorcer da linguagem, nos lembrando que nenhuma expectativa sobre cada verso deve ser criada, sustentando o contágio da leitura de Herberto Helder, e se lambuzando na profusão de imagens que se organizam como vulcão, como cascata, como derramamento daquilo que é vivo e, por isso mesmo, sem bordas. Romã é sobre essa confiança na sintaxe, naquilo que é possível ser dito quando o desejo te leva pela mão e pratica articulações e desarticulações rigorosas.
A primeira parte do livro, “Foguetes em ignição”, é a disparada do vínculo. A poeta então convoca o leitor ao que o espera: “Como pude perder o ritmo / forçar o enjambement pra cima do nível do aceitável / me fazer sibilante e sinuosa, exagerar”. O lançar-se ao outro, neste caso, começa por um reconhecimento dos materiais de que dispus e disponho no campo do trabalho poético. Com uma recepção criteriosa, ciente de que a primeira pessoa é sempre suspeita, Romã já reconhece de início que “é importante ser ninguém / pra poder ser cavalo / você tem que ser ninguém”; mas que, “No entanto, ninguém existe. / É importante, tem uma voz”. É possível entrever nesse trabalho a força do legado de Ana Cristina César, aquela que tensionou a exposição da intimidade como invenção de forma inesperada para sua época, trilhando um novo modo de pôr em relação poesia e vida. “A intimidade é provocativa, ou provocante, porque solicita a relação”, escreve o crítico Marcos Siscar em importante ensaio sobre a poeta.
É justamente nesse cerne que se dão as provocações de Romã, nesta solicitação ou endereçamento que cabe tão bem ao amor e à literatura, ao amante e ao leitor: "Você também já viu de perto como posso perder o foco / ser levada pro invisível das coisas / e depois de muito me perder / de lá trazer mensagens bem claras.”; “Contigo não preciso nunca entregar nada / já está tudo sempre entregue.” Na segunda seção do livro, “Os fósforos que você roubou”, o corpo a corpo dessa intimidade se aprofunda. O amor que a escrita de Júlia de Carvalho Hansen propõe se faz nos braços da própria poesia: a imagem do “filete de página que marcou a sua mão” se parece com o “filete de sangue / nas gengivas” de Ana C.? Ou, digressão minha, é possível a um verso ter tanta força e tanto afeto que emoldure uma palavra na memória? Há ainda a evidência da simultaneidade do sujeito lírico nesta seção – mas também por todo livro: “eu blefo e juro / eu ofereço / agulha e tropeço / meus instrumentos / ser honesta e cruel”, “sou tua que tesão / e tão eu”. As imagens da agulha e do tropeço são precisas para falar de uma poesia atravessada por interrupções de ideias e imagens que se rearranjam num tecido, em um só tempo, tão mútuo e tão pessoal.
Já a seção “Pedras e maçãs” é feita das experiências iniciáticas, os fatos do corpo, desde a família, o primeiro beijo, a perda da virgindade, a imaginação, a decepção e o limite que o outro inspira. “A primeira vez que eu enterrei você” é um verso mantra no poema Lápide, que traz camadas menos açucaradas do atrito da intimidade e da entrega. Em “Take the long way”, encontramos vento sólido, ausências, tempestade. Dos cinco poemas que compõem essa parte, três são curtos, na contramão da primeira metade do livro.
Até o léxico, nesse momento, parece também se orientar pela cautela, e observa--se outra frequência da paixão na própria forma, a contenção de quem “Queria escrever com ódio o teu desaparecimento / erguer fúrias e avanços como fazem / a lava, os maremotos e os delirantes. / No entanto mandei outro e-mail / falando do vermelho dos pássaros do Índico”. A última palavra dessa seção, abrigo, é a deixa para o que estar por vir, “Granada”.
Granada é um projétil com a forma de romã que abriga pólvora. E é, em espanhol, a própria tradução da palavra romã. É também a parte final deste livro como um remanso. E seria como uma certeza, uma convicção, uma promessa, se estes não fossem materiais tão precários, e se os explosivos não fossem tão dados aos desastres. Mas há o eco que é “tão nítido / quanto o teu desejo de ficar comigo.” Amansar não como uma domesticação, mas como uma delicadeza, depois dos riscos corridos por um livro exagerado, dramático, afinal, “todo eu é ruidoso”. Poder então, nos seus últimos poemas de espírito intranquilo e simultâneo, “entre o búfalo e a borboleta”, falar de uma entrega confiante e durável entre poesia e vida, a despeito de tudo que ameaça cindir.