“Para que o caráter de um ser humano desvende qualidades realmente excepcionais, é preciso ter a boa sorte de poder observá-lo em ação durante longos anos. Se essa ação é despida de todo egoísmo, se o espírito que a orienta é de uma generosidade sem igual, se é absolutamente certo que ela não buscou recompensa nenhuma e que, além do mais, deixou marcas visíveis neste mundo, então estamos, sem sombra de dúvida, diante de um caráter inesquecível.”
Com essas palavras, o escritor Jean Giono (1895-1970) dava início ao celebrado O homem que plantava árvores, um comovente relato sobre o pastor de ovelhas que dedicara a vida a reflorestar uma inóspita região do sul da França. A convite da revista Reader’s Digest, em 1953, escreveu o texto para figurar na seção The most unforgettable character I’ve met. Nela, pedia-se que o convidado narrasse seu encontro com a pessoa mais inesquecível que conhecera ao longo da vida, alguém dotado de um caráter verdadeiramente singular.
Em seu texto, Jean Giono relatava que, cerca de quarenta anos antes, lançara-se numa andança por paragens completamente desconhecidas, na região em que os Alpes entram pela Provença. Passados três dias de sua trajetória, viu-se acampado em meio a uma desolação sem igual. Não havendo encontrado água, e sem nada que lhe desse alguma esperança de encontrar, resolveu seguir por mais algumas horas de caminhada. Foi quando teve a impressão de avistar ao longe uma pequena silhueta. Achou que fosse o tronco de uma árvore solitária, mas era um pastor, e cerca de trinta carneiros deitados na terra escaldante descansavam perto dele.
O pastor ofereceu-lhe água e abrigo. Não morava numa cabana, mas numa casa feita de pedra. Logo ficou decidido que ali Jean Giono passaria a noite, já que o vilarejo mais próximo estava a mais de um dia e meio de caminhada. Como a companhia daquele homem inspirava-lhe paz, na manhã seguinte pediu permissão para passar o dia descansando. Foi assim que acabou descobrindo que o pastor se dedicava a semear árvores. Àquela altura, já havia plantado cem mil. Destas, vinte mil tinham vingado, mas esperava perder a metade por conta de roedores e outros imprevistos. Sobrariam então dez mil árvores, que cresceriam naquele lugar onde antes nada havia.
“Foi então que fiquei intrigado com a idade daquele homem. Parecia claramente ter mais de cinquenta anos. Cinquenta e cinco, ele me disse. Chamava-se Elzéard Bouffier. Tinha sido dono de uma terrinha na planície. Ali vivera toda a sua vida. Ali perdera seu único filho e depois sua mulher. Retirara-se para a solidão e desfrutava de uma vida lenta, com as ovelhas e o cachorro. Concluíra que aquelas terras estavam morrendo pela falta de árvores. Disse-me também que, não tendo ocupações muito importantes, havia resolvido remediar aquele estado de coisas.”
No dia seguinte, despediram-se. Um ano depois começaria a Primeira Guerra Mundial, para qual o escritor seria recrutado. Ao fim da guerra, sentindo necessidade de respirar um pouco de ar puro, tomava novamente o rumo daquelas paisagens desertas, deparando--se agora com uma verdadeira floresta. A água reaparecera, junto com salgueiros, vimeiros, prados, jardins, flores e “uma certa razão de viver”.
Por isso, a partir de 1920, Jean Giono nunca mais passou um ano sem visitar o pastor, que seguiria tranquilamente com sua tarefa, ignorando a guerra de 1939 como havia ignorado a de 1914. “Quando se pensava que tudo aquilo saíra das mãos e da alma daquele homem – sem meios técnicos –, logo se percebia que os homens podiam ser tão eficazes quanto Deus em outros domínios além da destruição.” A última vez que o encontrou, em 1945, Elzéard Bouffier tinha 87 anos e seguia plantando árvores. Ele morreria dois anos mais tarde.
O HOMEM QUE PLANTOU ESPERANÇA
Segundo Pierre Citron, biógrafo e editor de Jean Giono, o texto foi escrito nos dias 24 e 25 de fevereiro de 1953, sendo enviado logo em seguida para a revista. No entanto, o fact checker da publicação não encontrou nenhum vestígio de Elzéard Bouffier, e nem de sua grandiosa floresta. Recusado pela Reader’s Digest, em carta que acusava o autor de ser um impostor, o texto seria publicado em março de 1954 na revista Vogue, com o título The man who planted hope and grew happiness.
Em 1975, a filha do escritor, Aline Giono, publicaria um texto em que a história completa viria à tona, revelando a divertida gênese da inspiradora fábula. Em seu artigo, tratava de recolher um texto de jornal do próprio Jean Giono, de 1962, em que ele recordava a figura de seu pai, um sapateiro pobre dado a plantar árvores.
Ainda assim, o texto foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo considerado um dos mais cativantes manifestos da literatura do século XX. Após a leitura, pareceu-me impossível não pensar na Amazônia e no trabalho agrícola de gerações de populações indígenas, que levaram a maior floresta tropical do mundo a contar com inúmeras espécies vegetais domesticadas, produzindo uma exuberante diversidade.
O homem que plantava árvores recebeu há pouco edição impecável da Editora 34, dentro da Coleção Fábula, que honra o autor e a obra. A publicação conta com ilustrações de Daniel Bueno, projeto editorial de Samuel Titan Jr (que assina a tradução com Cecília Ciscato) e projeto gráfico de Raul Loureiro.
Para aqueles/as que estão renovando as esperanças acompanhando o movimento internacional de greves de estudantes contra as mudanças climáticas (com a admirável atuação da adolescente sueca Greta Thunberg), a presença mítica de Elzéard Bouffier é capaz de oferecer uma imagem vigorosa, lembrando-nos que natureza e cultura estão mais imbricadas do que costumam apregoar nossas seculares tradições filosóficas.