Caio Fernando Abreu reproducao.da.internet

 

 

Para a minha geração, que leu Morangos mofados na dobra entre os 1990 e a chegada do novo século, o que mais chamava atenção na obra mais famosa de Caio Fernando Abreu (1948-1996) era a beleza anacrônica das suas histórias. O fiapo de vodca barata na ponta da língua, o pavor de saber quem estava do mesmo lado da trincheira, aquele vinil arranhado de Angela Ro Ro, a certeza do telefone jamais tocar outra vez… Enfim, toda a atmosfera do livro nos chegava com a salvaguarda que aquele prontuário de um Brasil noturno, assustado & sussurrado, havia ficado para trás. Tínhamos uma Nova República, uma nova Constituição e novíssima moeda. Não havia motivo para se falar em mofo.

Lia-se Morangos mofados porque era lírico, quente, gay e vivo. A leitura da virada do milênio deixava de lado que o livro é também um dos grandes testemunhos sobre o que foi ser jovem em meio à ditadura brasileira. Lembro ter assistidos a inúmeras adaptações teatrais dos contos do livro ao longo da década passada, todas escavando a busca desesperada por alguma dose de afeto que percorre as histórias, e pelo que ainda lembro: todas deixando de lado o jogo político a assombrar aqueles afetos.

Como fomos ingênuos: ainda era muito, muito cedo para se “atualizar” Caio. Para se extrair o contexto histórico (o mofo) e reter apenas o belo.

Muito se fala que o Brasil, salvo algumas grandes exceções, não tem tradição de obras pensando a ditadura militar. Mas talvez seja preciso olhar para a produção das décadas de 1970 e 1980 para além do modelo restritivo de romance da ditadura imposto pelo Boom latino-americano. Um modelo que dificulta uma leitura mais ampla também para os autores de língua espanhola, que não se encaixa no padrão Vargas Llosa/García Márquez. É o caso do uruguaio Mario Levrero (1940-2004), que teve sua produção dos anos 1970 relegada ao rótulo de surrealista ou ao filão do sci-fi. Quando agora suas novelas distópicas, como Lugar e Paris, estão ganhando novas (e caprichadas) edições, é que o caráter sufocante do Uruguai de então começa a ficar mais evidente. Em termos de Brasil, é preciso que se faça um inventário do que foi pensado sem ser explicitamente escrito ou do que foi escrito de “outra” forma, tangencialmente.

É claro que o caráter político de Morangos mofados já havia sido apontado. O melhor exemplo é o sempre lembrado texto que Heloísa Buarque de Hollanda (com o título Hoje não é dia de rock) publicou no Jornal do Brasil, em 1982, quando do seu lançamento. A crítica destaca a capacidade de Caio em falar da crise da contracultura como projeto existencial e político de uma forma originalíssima - “Através da aparente isenção no recorte de situações e sentimentos, na maior parte dos casos engendrado por uma sensibilíssima acuidade visual (e muitas vezes musical), cresce e se refaz a história de uma geração de sobreviventes”.

Mas não estamos mais na virada do milênio, ainda que Caio tenha se tornado totem de exagerados (e apócrifos afetos) nas redes sociais. A Constituição já é balzaquiana e a Nova República, para alguns, acabou com o golpe que tirou a presidenta Dilma Rousseff do poder em 2016.

Os textos críticos a acompanhar a edição dos contos completos do autor, lançada pela Companhia das Letras em meio ao disruptivo ano de 2018, já evidenciava o engajamento de sua literatura. Era preciso recolocar Caio em cena. Como era de se esperar, o citado artigo de Buarque de Hollanda reaparece aqui. Em seu posfácio, o escritor Alexandre Vidal Porto destacou que “Caio trata de tempos sombrios, ditadura, doença e realidade circundante. Sua literatura fala de angústia, da inquietude dos jovens, com muita vida pela frente”. E continua: “Caio era um homem do imediato, nunca buscou a eternidade. Com base em sua experiência, porém, acabou oferecendo um testemunho atemporal do que acontece com as pessoas em épocas de opressão”.

Ao fim dos seis primeiros meses do governo Bolsonaro, e com toda a tensão contra minorias em pauta diariamente, Morangos mofados ganha nova edição, com posfácio inédito de José Castello. Se os tempos fossem outros, sugeriria que Os dragões não conhecem o paraíso, grande e esquecido livro de contos de Caio, fosse escolhido para uma reedição solitária. Ou mesmo estaria torcendo para que o romance Onde andará Dulce Veiga, com seus humor e brilho camp, ganhasse a edição crítica e cuidadosa que nunca teve.

Mas é que 2019 é noturno, sujo, imprevisível. E mofado. É um ano sobre quem está ao nosso lado nas trincheiras. No conto Diálogo, que abre Morangos, uma paranoica conversa nos faz acender o alarme de perigo iminente já nas primeiras linhas: “A - Você é meu companheiro? B - Hein? A - Você é meu companheiro, eu disse. B - O quê”. A peça central do livro, no entanto, é o conto seguinte, Os sobreviventes. Dois amigos, numa bêbada noite de sábado, passam a limpo os fracassos e exageros de quem viveu o desbunde, quando corpo, arte e militância eram uma coisa só. Um deles sabe que precisa deixar o Brasil. E logo. Precisa de um lugar com nuvens menos heavy sobre a cabeça. E não é que voltamos a querer dizer bye, bye, Brasil e a correr para o aeroporto. Canadá, Portugal, Uruguai ou os shoppings de Miami-Orlando, tanto faz… “Te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve uma dia”, se despede uma das personagens do conto.

Em 1982 o Brasil vivia a ressaca da ditadura no limiar da democracia. Esse mesmo 1982 produziu outro livro que é melhor lido agora do que na virada do milênio: A teus pés, de Ana Cristina Cesar (em 1998, a obra da autora ganhou reedição pela Ática). É preciso explicitar: foram um autor gay e uma poeta lésbica aqueles que melhor nos falaram sobre o estranho fim da ditadura brasileira. “Não há razão/ para conservar/ esse fiapo de noite velha”, escreveu Ana em seu livro daquele ano.

Em 2019, vivemos outra vez a ressaca. Mas dessa vez a ressaca da democracia. Ler ou reler Morangos mofados é uma experiência que não pode ser apenas bela, é preciso sentir sua cumplicidade histórica. E como bem aponta um dos contos do livro, estamos de novo esperando que alguém, assim do nada, anuncie que Urano entrou em Escorpião.