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Num artigo recente publicado no Pernambuco, a jornalista e tradutora Mariana Sanchez relatou com indisfarçável espanto detalhes da vida da escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993), descritos na biografia La hermana menor, da escritora Mariana Enríquez. Caçula do aristocrático clã Ocampo, segundo sua irmã Victoria (1890-1979), Silvina parecia uma mulher disfarçada de si mesma. Uma mulher que viveu uma relação de vida inteira com Adolfo Bioy Casares (1914-1999), marcada pelas traições constantes do marido. Dizem que antes de se envolver com o autor de A invenção de Morel, chegou a ter um caso com a futura sogra. Também foi alvo do fascínio de Alejandra Pizarnik (1936-1972), que teria se matado por esse amor não correspondido. Tanto no caso da sogra quanto no da poeta, não há documentos que comprovem as relações. Dúvidas que só alimentam a sua personalidade enigmática, reforçada ainda por uma meia dúzia de fotos à David Lynch que encontramos quando teclamos seu nome pela busca do Google.

E mais: para Ocampo, o amigo de vida inteira Jorge Luis Borges (1899-1986) dedicou um dos seus contos mais célebres, Pierre Menard, autor do Quixote.

O mais espantoso em relação a Ocampo, para nós brasileiros, é que só agora um dos seus livros ganha edição nacional – A fúria e outros contos (Companhia das Letras, R$ 69,90), publicado originalmente em 1959. Obra de maturidade, traz não apenas uma autora de estilo já formado, também uma produção literária que a deixa em território de competição com o seu “Adolfito”. Há estudos críticos que a aproximam de Clarice Lispector (1920-1977), sobretudo por seu olhar claustrofóbico em relação a uma classe média ensimesmada e patética. “De fato, as duas leram uma à outra e só não se encontraram na viagem de Clarice a Buenos Aires para a feira do livro de 1976 por um azar de última hora”, atesta a crítica Laura Janina Hosiasson (USP) no posfácio de A fúria.

Uma leitura rápida dos contos de Ocampo talvez leve à criação de uma diferença imaginária entre as duas: a de que a argentina seria mais cruel com seus personagens. Bobagem. É que muitas vezes a crueldade de Clarice se configurava em um território mais introspectivo, que se revelava em momentos de epifania – ainda que a leitura dos contos de A via crúcis do corpo e da novela A hora da estrela desmonte essa teoria num piscar de olhos; no caso das narrativas de Ocampo, as camadas superficiais já recebem os solavancos.

Para os leitores de Clarice, a comparação imediata aparece no conto A fotografia, de Ocampo. Sua ação acontece em meio a uma comemoração de aniversário em que a homenageada é tratada como animal numa exposição. É impossível não se lembrar da Clarice do conto Feliz aniversário, em que enxergamos o horror da festa pelos olhos de uma anciã. Na narrativa de A fúria, uma jovem paralítica se transforma numa espécie de objeto móvel e inconsciente, a ser levado de cá para la, a fim de cumprir os caprichos da família e do fotógrafo contratado para o evento. O corpo como um objeto de decoração às avessas, e desmontável, é uma fixação frequente da argentina.

Em A fúria e outros contos o horror do corpo é de fato um tema frequente. Numa das histórias, uma dona de casa, saudosa do cachorro que acaba de morrer, decide empalhá-lo, persistindo com a ideia de que, apesar de morto, ele continuará a protegê-la. Há também assassinatos que acontecem pela “naturalidade” com que os jogos sociais são armados: da madame que recebe a costureira e sua assistente para a prova de um vestido de veludo em pleno verão portenho ao conto que dá nome ao livro, no qual o narrador declara “para não provocar um escândalo, fui capaz de cometer um crime”.

Num dos melhores contos do livro, A casa de açúcar, uma mulher incorpora os hábitos da moradora anterior da casa para onde acaba de se mudar com o marido. Nessa história, é possível perceber que o fantástico em Ocampo é artifício para criticar o modus operandi da burguesia. Quando temos em mente essa perspectiva, sua carpintaria de contista se sobressai a de “Adolfito” – que se saiu melhor em novelas impecáveis (A invenção de Morel e O sonho dos heróis, para ficarmos apenas em duas) do que como autor de textos curtos.

Um detalhe curioso sobre A fúria e outros contos. Foi de Borges a ideia de batizar com o nome de uma de suas histórias, lançando mão ainda do complemento “e outros contos”, para não sugerir uma hierarquia irreal entre as narrativas. Mas apesar de Ocampo ter convivido de forma íntima com os dois maiores cânones da literatura argentina do século XX, em suas histórias é possível encontrar a sinuosidade e a inquietude psicológica que jamais interessaram a Borges ou a Casares. É como bem definiu Pizarnik: “O perigo é que estes contos dizem incessantemente algo mais, outra coisa, que não dizem...”