Procura-se pelo nome de María Moreno nos circuitos de pensamento crítico no Brasil. Em livrarias, nada. Em mesas de debate no território nacional, os relatos são esparsos. Nos corredores acadêmicos, muito pouco, referências ainda pontuais. Mas como? Como? Como é possível que estejamos tão perto e tão longe dessa cronista argentina que é possivelmente uma das vozes mais astutas do feminismo na América Latina? De forma que ler Panfleto – Erótica y feminismo, lançado em 2018 na Argentina e sem previsão de tradução pelas bandas de cá, é um exercício simultaneamente de fascinação por aquilo que se lê e espanto por saber que aquilo deveria ter sido lido antes. Afinal de contas, estamos falando de um livro que traz uma compilação de textos publicados ao longo dos últimos 30 anos – entre 1988 e 2018 – e a não circulação deles em territórios brasileños indica que precisamos fazer circular melhor o saber das feministas que não necessariamente vestem o tailleur bem-caído das grifes acadêmicas, de preferência aquelas gringas do hemisfério Norte.
Porque Moreno não apenas é uma precursora na América Latina em escrita crônica sobre questões de gênero, sobre o queer e sobre o feminismo como um modo de organização do conhecimento e como metodologia antipatriarcal e, portanto, anticapitalista. Ela é também aquela que, com mais agudez e engenhosidade, soube entortar o campo da crítica, já no fim dos anos 1980, com textos que a toda hora subvertem expectativas.
Seu trabalho, por exemplo, enquanto crítica literária, precisa ser mais atentamente observado. Aliás, boa parte dos textos presentes nessa compilação publicada pela Penguin Random House traz revisões não apenas de obras, mas da vida de autoras que são muito caras – algumas caras demais – ao desdobramento do pensamento feminista nesses últimos dois séculos. Autoras como Alejandra Pizarnik, Virginia Woolf, Katherine Mansfield, Gertrude Stein e Clarice Lispector estão aqui, lá, em todo lugar. Sobre Clarice, há, inclusive, um texto inteiro dedicado a como a escritora brasileira fez, lucidamente, “da loucura um procedimento literário” e como ela conseguia, como poucas pessoas no mundo, escrever “à maneira do inconsciente”.
Mas é quando está dedicada a destruir alguns pilares da crítica – literária, cinematográfica – que Moreno melhor nos instrui e nos diverte. Já no primeiro artigo do livro, escrito em 1988, não sobra pedra sobre pedra diante da obra e dos intentos pseudofeministas de Anaïs Nin, a quem a cronista chamará de “escrava liberta” do patriarcado por ter sido uma das escritoras “que mais se empenhou em promover, no terreno da literatura, uma mística de seu próprio sexo sexuado”. Ou seja, lá estava, nas palavras de Moreno, a ideia de que a mulher só poderia desfrutar de um “gozo pedagógico”. Um que a essencializasse no lugar, bastante conveniente aos homens, de sujeitos que só gozam quando amam. Tudo isso sustentado por uma literatura “feminina” que, para ser chamada de tal, não poderia prescindir de um floreio sentimentalista salpicado de, nas palavras de Nin, “lágrimas, risos, palavras, promessas, ciúmes, invejas, todas as variedades de medo” e assim por diante. Moreno dá um sorriso de canto de boca e escreve, a partir daí, como quem quer jogar todos os essencialismos em latas de lixo não recicláveis.
Não se trata, portanto, de acaso que seja esta a crônica de abertura do livro. Pois que no cerne de boa parte das críticas escritas pela jornalista argentina está sua profunda e fundamentada irritação com as cargas de misoginia e débil chacota que vêm, com frequência, acompanhadas de termos como “escrita feminina”, “olhar feminino”, “imaginação feminina” e derivações. Elabora essas críticas com um tom muitas vezes sarcasticamente didático (“uma homenagem a Juana Manso e tantas outras que não tinham tempo, nem humor, para usar a papilas gustativas da fina ironia feminina com que Katherine Mansfield escreveu seus contos”) para ir de frente contra políticas de leitura que ora essencializam a Mulher enquanto uma categoria imutável, ora, no outro oposto, minimizam a escrita e autoria de mulheres em nome de uma “bissexualidade” de escritores homens que teriam uma “escrita feminina” mais legítima que as próprias mulheres – e nesse momento ela pontua que o modelo patriarcal de feminilidade na literatura, com muita frequência, está atravessado pelo dizer “sim, sim, sim” de Molly Bloom (Ulisses, de James Joyce). Moreno praticamente conclama: pera lá, pera lá, pera lá.
Ao longo dessa compilação de artigos, leremos muito, portanto, sobre o sexo e suas formas de representação literária ou cinematográfica, sobre como a psicanálise reduziu complexidades da sexualidade feminina, particularmente da homossexualidade feminina – e nesse campo é muito prazeroso o momento em que Moreno se põe a analisar o analista, destrinchando o Freud que escutava a sua famosa e inominável paciente lésbica – e sobre como é fundamental que as feministas reivindiquem uma escrita para além da já citada “fina ironia” palatável, jogando na roda figuras como a personagem Greta La Gorda (inventada, a propósito, por um escritor homem, Günter Grass), a quem ela descreve da seguinte maneira: “Greta La Gorda, assassina culinária de figurões políticos, filósofa do poder libertador dos ventos intestinais, feminista solitária dos sete pecados capitais, essa deveria ser nossa líder. Não vale a pena entrar na cultura sem nossos corpos. Mas não os tratemos como se fossem almas”.
No último artigo, publicado em 2018, eis a convocatória, o panfleto em si que dá título ao livro: “façamos a revolução que não sublima nada”, ela escreve. “Se a homossexualidade sublimada e a misoginia foram as condições da civilização, façamos a revolução da alma carnal (...) e que o ciúme, a inveja, o ódio e a má índole não sejam domesticados pela ideologia e as terapias do eu.” Que a nossa dieta seja, portanto, a “do excesso”: “gozemos sem ter fome em nome de um feminismo de especiarias, gordo, ganancioso (...) porque entre iconografias políticas feitas de vísceras não há colonialismo possível”. A figura de Greta La Gorda sobrevoando sobre nossas cabeças.