Marlon James JUN19 Jeffrey SkempDivulgacao

 

Se os deuses tudo criaram, não seria a verdade apenas uma outra criação?
Marlon James, in: Black leopard, red wolf

Griots são os guardiões do passado e da história das civilizações africanas. Eram eles os responsáveis por perpetuarem a memória social através de narrativas, canções e poemas. Griots ainda existem em determinadas regiões da África Ocidental e mantêm-se como figuras essenciais à tradição oral do continente. Antes da dominação da língua escrita, a linguagem oral que usavam para garantir a preservação da história de seu povo fez dos griots agentes importantes nas cortes reais, como sábios conselheiros que conheciam o passado para auxiliar na vivência do presente e na construção do futuro. Em sua narração do épico africano Sundiata, o griot Mamadou Kouyaté revela que sua “palavra é livre e despida de toda inverdade”. A palavra de um griot é, portanto, confiável.

Para ler Black leopard, red wolf, primeiro livro de uma trilogia de fantasia escrita pelo jamaicano Marlon James, precisamos nos preocupar exatamente com o contrário, pois o narrador dessa história é extremamente ambíguo – e é essa a proposta do autor. Uma história não é necessariamente verdadeira porque quem a conta assim determina e um só ponto de vista dificilmente basta para dar conta de uma sucessão de eventos. Assim como uma só história não abarca a imensidão do imaginário e da cultura do continente africano: daí o trabalho de Marlon James em propor uma recuperação das narrativas, dos mitos, dos personagens e das paisagens da África. Essa é uma tentativa de revitalizar a relação entre tais elementos e os filhos da diáspora africana nos tempos contemporâneos, ao mesmo tempo em que subverte os parâmetros e arquétipos tradicionais do gênero fantástico – por tradicionais, leia-se de origem ocidental e branca. James orquestra uma segunda subversão, abalando as expectativas do público acerca do que um vencedor do Man Booker Prize, a mais respeitada premiação da literatura em língua inglesa, escreveria depois de Uma breve história de sete assassinatos, seu reverenciado romance. Laureados do Man Booker, afinal, não costumam optar pela fantasia.

Como um homem da diáspora africana, nascido e criado em uma família de classe média nos subúrbios de Kingston, na Jamaica, James queria uma história que não reduzisse o continente africano à marca da escravidão e, de quebra, provasse que há bastante espaço na fantasia para protagonistas negros e de outras etnias. Black leopard, red wolf foi a narrativa que ele decidiu escrever para explorar as ricas mitologias africanas em um ritmo turbulento e alucinante, que leva os personagens em uma missão fracassada por terras fantásticas inspiradas nos impérios da Idade do Ferro, como os de Etiópia, Mali e Gana. É aí que monstros alados e vampirescos soltam raios e andam à luz do dia, necromantes enfeitiçam pessoas vivas para se submeterem ao seu comando, portas levam o viajante que souber abri-las de um ponto a outro do mapa em segundos e um homem – nosso narrador – tem um olfato sobrenaturalmente aguçado, o qual ele usa para localizar pessoas temporal e espacialmente distantes e que lhe rendeu seu nome, Tracker. A palavra tracker se traduz literalmente como “rastreador”, mas talvez a sonoridade deste nome e o caráter ambíguo do personagem remetam ao trickster, um tipo de herói trapaceiro e contraditório que aparece com frequência no repertório narrativo de povos africanos e indígenas. Assim como Tracker, o trickster é tanto malicioso e astuto quanto pode ser tolo; é capaz de gestos bondosos e generosos, mas também destruidores e maldosos.

Em Black leopard, a verdade está invariavelmente em jogo e os leitores permanecem implicados nesse embate desde a primeira página. Tracker começa a contar sua história para um inquisidor que o interroga, e seu aviso inicial é surpreendente para um livro de fantasia cujo enredo se baseia em uma missão de resgate: deu tudo errado; o menino que deveria ter sido recuperado está morto; o próprio Tracker, ao que tudo indica, está preso; e, segundo ele, não há mais nada a ser dito. Mas é claro que há, senão não teríamos a história. Para nossa sorte, ele tece a narrativa e reconta a sua perspectiva dos fatos, detalhe que Marlon James ressalta em entrevistas, quando revela que a estrutura narrativa da trilogia Dark star não é feita de volumes que, juntos, complementam uma história cronologicamente. Black leopard revela um ponto de vista; os dois próximos livros confessarão os seus, e James não soltará a sua versão definitiva. Cabe aos leitores a decisão de em quem (não) confiar, e Black leopard, red wolf é apenas o depoimento de um dos personagens que viveram a história.

Marlon James sabia que sua decisão de enveredar pela fantasia, logo após ter recebido o Man Booker, impressionaria público e crítica. O establishment literário, no qual preconceitos contra fantasia e ficção científica persistem – especialmente quando escrita por autores negros – começava a prestar a devida atenção em sua obra quando James anunciou que seu próximo projeto seria escrever um “Game of thrones africano”. É bom ir avisando, aliás, que Black leopard não é uma versão da saga de George R. R. Martin com protagonistas negros. James vai além de se inspirar nos cânones ocidentais do gênero e faz mais do que aproveitar a onda do sucesso bilionário de Pantera Negra, o filme dos estúdios Marvel sobre um super-herói que herda o trono de um rico, poderoso e oculto reino africano, que rendeu mais de US$ 1.3 bilhão em bilheteria. O primeiro livro da trilogia Dark star é uma obra à parte, na qual personagens e situações deixam o leitor aturdido a cada capítulo, a violência brutal não cessa em provocar desconforto genuíno e onde James desenvolve sua reflexão de que personagens negros representam uma parte fundamental do passado e serão agentes essenciais à construção do futuro. A antecipação pelo lançamento do livro em janeiro deste ano era tal, que, apenas um mês depois, ele já tinha sido fisgado para uma adaptação cinematográfica, assinada entre a Warner Bros. e a produtora do ator estadunidense Michael B. Jordan, que fez especial sucesso em 2018 como o vilão de Pantera Negra.

Para tanto, James se apoiou nas bases mitológicas, geográficas, religiosas e linguísticas do continente africano: leu mitos, épicos, livros sobre clima, cosmologia e história, e buscou elementos reais das culturas africanas para incorporá-los ao seu mundo imaginário. Sangomas são “antibruxas” que atuam como curandeiros entre o povo Zulu, da África do Sul, e as crianças Mingi são assassinadas pelas tribos nas quais nascem simplesmente por apresentarem características interpretadas como maldições. Os griots fazem parte da narrativa, desempenhando seu papel para revelar o obscuro ou desconhecido aos personagens, mas também ao leitor. James busca o conceito de shoga, relacionado a gênero e sexualidade não normativos – bastante presentes no livro, inclusive em relação a Tracker, um homem homossexual – e que em swahili quer dizer “homem afeminado” até hoje. E um ponto essencial do enredo retoma a orientação matrilinear de herança, que orientou tribos e sociedades africanas em contraste com a patrilinearidade da tradição europeia ao determinar que tanto terras e posses quanto a autoridade podem ser transmitidas através das mulheres, não apenas dos homens. No universo de Black leopard, red wolf, bruxaria não tem nada a ver com druidas e fadas, mas com o poder de ancestrais e espíritos, mediados por sangomas e sacerdotes que empreendem a conexão entre os vivos e os mortos.

A fantasia de Marlon James enfeitiça desde a primeira página, com sua composição narrativa inusitada. O enredo não é inesperado somente devido às fontes mitológicas não ocidentais nas quais o autor se inspira, uma vez que existe todo um movimento de escritores africanos e afrodescendentes no gênero da ficção especulativa – N. K. Jemisin, Octavia Butler, Tomi Adeyemi, Charles R. Saunders, para citar alguns –, que conduzem suas histórias a partir de culturas africanas. Nosso narrador Tracker deveria ter saído em busca do garoto, ao lado de um leopardo que se transforma em homem, um gigante que não gosta de ser chamado de gigante, um búfalo especialmente esperto, uma bruxa com tantos mistérios na manga quanto feitiços, um antigo desafeto, uma mercenária e um ex-soldado. Mas a “sociedade”, ao contrário d'A sociedade do anel da também trilogia O senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien, se desbanda no primeiro instante em que se reúne, para que cada um siga seu caminho e seja a pessoa a ganhar a recompensa pelo menino sumido. E, antes mesmo de chegarmos ao primeiro encontro da sociedade, já sabemos que tudo deu errado; ao menos é isso que Tracker revela ao seu interrogador. Como ele chegou ali é mais um mistério e, embora o final da história nos interesse enormemente, o que mais importa é o processo, que culmina na morte do menino. São traições, desentendimentos, reencontros, desencontros, fugas desesperadas e muitos combates fatais que nos levam às revelações finais e um desfecho que, comparado a outras fantasias, ilude com a impressão de ser um grande anticlímax. Mas as emoções até ele foram inúmeras, e as tais revelações nunca terão sua veracidade determinada por inteiro, já que James montou sua trilogia para que as partes nunca completem um todo. Então Tracker, um trapaceiro contador de histórias ao estilo de Anansi, o deus aranha, pode ter mentido o tempo todo. E nós, leitores, podemos nos ter deixado levar.

James surpreende em todos os alicerces que usou para conceber sua trilogia. Além dos épicos e mitos africanos e de sagas gregas e nórdicas, o autor retomou obras que marcaram sua juventude na Jamaica: as histórias em quadrinhos, como as séries dos X-Men, Novos mutantes, Hellboy e Patrulha do destino. James queria trazer as ruas para as disputas de poder entre herdeiros do trono e rumores de guerra, então entendeu que os épicos sobre grandes heróis seriam insuficientes para lhe ajudar a criar o cenário para um homem a serviço de pessoas importantes. Os dramas políticos são relevantes para a trama, mas Tracker é o cara comum que se envolve – relutantemente, é bem verdade – nas maquinações dos poderosos. A relação de James com a cultura pop lhe rendeu muita inspiração para as dinâmicas de grupo desbaratado e cheio de desajustados, em uma crítica aberta à ideia de que personagens se uniriam sob um grandioso propósito coletivo até o fim, quando uma luta épica entre as forças do Bem e do Mal terminaria por recompensar os justos e punir os mal-intencionados – uma das tradições narrativas ocidentais mais comuns, sobretudo nesse gênero. Ninguém promete se sacrificar por ninguém: em Black leopard, red wolf, é cada um por seus interesses, inimigos podem facilmente se tornar parceiros no crime, escrúpulos são raros, e infeliz do que se deixar atacar pelo caminho.

A jornada é a verdadeira história, a forma como cada personagem – em especial Tracker, nesse primeiro volume – modifica sua visão de mundo e se adequa para melhor responder às circunstâncias que regem o jogo. Se a missão fracassa, o processo é que conta. E James revela, enquanto isso, a humanidade profunda – e, em sua crueza, desconfortável e incômoda – dos personagens. Por mais mágicos e fantásticos que sejam.