A primeira vez que escutei Maria Valéria Rezende contar sobre Carta à rainha louca, na época ainda sem esse título, foi durante uma entrevista no comecinho de 2013. Não era apenas esse, eram três projetos em vista, organizados todos em sua cabeça, à espera de tempo para colocá-los no computador.
Escutei-os um por um naquela tarde, ela sabia exatamente como iria fazê-los – da voz da narradora a minúcias de composição. Tinha feito o começo de todos. Por graça, me disse que talvez não tivesse como realizá-los dada a idade, e pretendia dar a incumbência de concluí-los a uma amiga romancista mais jovem.
Desde aquele encontro, saíram Quarenta dias (2014) e Outros cantos (2016). Três anos depois do imediatamente anterior, chega às livrarias, agora, aquele que ainda faltava dos três que ouvi.
Conto esse episódio ao leitor por duas razões. Primeiro, para registrar que, por trás da aparente espontaneidade com que parecem brotar as ideias de Maria Valéria, espontaneidade que ela destaca nas entrevistas e em eventos de que participa, há um planejamento meticuloso, por anos.
Sim, ela se diverte escrevendo, como diz. Mas, para que não se duvide do aspecto cerebral de suas escolhas, aqui vale dizer que, mais de uma vez, em outras conversas que tivemos, ela me relatou com muitos exemplos como fazia a pesquisa de vocabulário de Carta à rainha louca, ambientado no século XVIII.
A outra razão para trazer de volta a conversa de seis anos atrás é para indicar que, apesar da diferença entre as protagonistas dos três romances, da concepção de suas vozes à estrutura narrativa, é possível entender os títulos de modo coordenado, quase uma trilogia sobre a condição da mulher brasileira e da escrita como invenção e liberdade. Sendo Quarenta dias a história de uma mulher dos dias de hoje, Outros cantos, a memória de uma outra, que viveu o século XX sob ditadura, este mais recente se apresenta como um romance histórico. Três projetos que coincidem com seu ativismo no movimento de mulheres autoras – tendo sido grande anfitriã em 2017, na João Pessoa (PB) onde vive, de um grande encontro de debates, leituras e apresentações de livros.
Carta à rainha louca acontece em dois tempos. Em 1789, Isabel das Santas Virgens está presa num convento em Olinda por ser considerada insana – em verdade nada comportada aos padrões exigidos – e resolve se defender por escrito diante da soberana, acreditando que, por ser também mulher, poderá dar ouvidos ao que ela tem para dizer. A missivista conta tudo o que vê dos abusos cometidos pelos homens da coroa e, quando acha que se excedeu, se autocensura, riscando as partes mais inconvenientes do relato.
Acontece uma interrupção, e a missivista volta a se pronunciar quatro anos depois, em 1792, após acontecimentos importantes da história brasileira, que não antecipo aqui para que o leitor não perca a surpresa. Isabel das Santas Virgens, que já ouviu falar da loucura da própria rainha, não está mais sozinha ao término de sua aventura numa colônia em ebulição. Em seus últimos acontecimentos têm a proteção de um africano, Gregório, que, no entanto, não consegue salvá-la de outra vez ir parar atrás de uma cela. Isabel tampouco escapa de ser de fato enlouquecida. Em muitas camadas de suas linhas, o sistema patriarcal se confunde com o colonial escravagista, e a todo instante é inescapável a conexão com o Brasil contemporâneo. Não faltam críticas aos poderes, nem mesmo à Igreja (como podiam pensar os incautos, supondo cautela ao saber que a romancista faz parte da comunidade de Cônegas de Santo Agostinho).
Maria Valéria é uma autora que exercitou, e ainda exercita, a escuta por vocação e força do ofício, e nessa pesquisa de vozes que se constituiu quase involuntariamente consegue configurar com acuidade suas protagonistas. O seu conhecimento da tradição literária lhe permite brincar com os gêneros e também exercer com exuberância o jogo de encadeamento narrativo. A protagonista de Quarenta dias escreve com dificuldade. A de Outros cantos, mais formal, tem o mesmo registro contemporâneo da anterior. Com esse novo romance, o leitor de Maria Valéria Rezende encontra-a num empreendimento extremamente difícil executado com destreza, e vai ter a certeza de que ela leva muito a sério o que está fazendo, para além do humor que existe nos próprios livros e no modo com que fala de si mesma como autora.