O que diz uma poesia que, no momento em que o nacionalismo xenófobo ressurge como novo-velho refúgio da extrema-direita global, é paraense sem abrir mão de ser do mundo? Para a crítica, o que fica da cisão entre a poética das formas e da experiência no caso de um poeta que, tendo emigrado de Belém para Innsbruck (Áustria) ainda na década de 1980, constrói sua linguagem sobre uma contaminação recíproca entre o português, o alemão e seus procedimentos?
Age de Carvalho tem feito ao longo da vida uma poesia que é, entre outras coisas, testemunho linguístico de um cosmopolitismo paraense: tudo nela é reverberação do encontro entre línguas e seus ruídos, esforço de tradução entre vida e escrita, relação corporal PT-BR<>DE. O processo de formação e desenvolvimento dessa linguagem, cujos encontros giram em torno de amizades com figuras do modernismo nortista, leituras de poetas da língua alemã e estudos de arquitetura e design, ganhou recentemente mais um volume. Esse lançamento, organizado em parceria com Mayara Ribeiro Guimarães (UFPA) e publicado pela Secult/PA, se chama Age de Carvalho: todavida, todavia. Poesia, jornalismo e design gráfico desde 1980.
O verso que dá nome ao registro é de um poema do livro de 2011, Trans, lançado pelo selo Às de colete (7letras/Cosac Naify). O projeto gráfico da série é do próprio Age, designer de profissão:
Lançada a moeda
para o alto: eis
o tempo
(...)
(rolam os verões,
(...)
sob os dois sóis no trigal –
a vida,
todavida, todavia
apenas um ponto de vista?),
(...)
O teor de movimento no tempo suspenso, que passa rápido mas contém em si os seus verões, está para além do verso-título já na apresentação da edição: “Ainda não estou fechando a conta, mas trata-se, querendo ou não, de um primeiro balanço” (p. 7).
Essa linha do tempo recosturada, balanço da “calma bossanovística” (p. 181) que marca com seu silêncio característico a escrita do poeta paraense, clareia uma série de relações em torno das suas palavras: relações de amizade, entre poemas, entre línguas, procedimentos e imagens que as atravessam. Como um João Gilberto que, curvado e arrastando o violão pelo palco, se assemelha a um imenso ouvido que não canta mas escuta [nota 1], como um Bob Dylan ao avesso quando escreve “She’s got everything she needs/ she’s an artist/ She don’t look back”, o todavida, todavia é uma reflexão das reverberações de outros livros, outras cartas, postais e papéis desde 1980, uma câmara acústica cujo movimento se inicia e resulta na poesia de Age de Carvalho.
Com isso, a primeira leitura que pretendo produzir aqui é a seguinte: a tarefa reflexiva que compõe o livro é um desdobramento da forma da própria poesia de Age, que propõe a escuta entre línguas na passagem do português (não, brasileiro, não: paraense) ao alemão, idioma cotidiano do emigrante que há mais de 30 anos vive entre a Áustria e a Alemanha.
Age é um poeta-tradutor: se a tradução é uma forma de leitura (p. 219), ou uma oportunidade da linguagem “escutar-se a si (e em si)” [nota 2], é isso que acontece quando procedimentos de formação de palavras de uma língua são usados em outra nos seus poemas, por exemplo. Escrever sobre o todavida, todavia, portanto, é escrever sobre a poesia de Age em campo expandido, sobre sua composição e atuação na fronteira entre arte e vida. Essa abordagem-Lego da forma, que brinca quebrando (e “Quebrar o brinquedo ainda/ é mais brincar”, lembra Orides Fontela) é uma das maneiras de produzir o espanto diante da linguagem com que o poeta trabalha desde um entrelugar particular (e se perguntando “a vida,/ todavida, todavia/apenas um ponto de vista?”).
Assim, Age faz parte de uma tradição de poetas cuja experimentação formal parece acompanhada de questões tradutórias, e que tem como portadores desde os irmãos Campos até poetas como Guilherme Gontijo Flores e João Gabriel Pontes. Não se confunda experimentalismo formal, no entanto, com falta de coração: os poemas de Age estão cheios de afeto pela terra e pelas pessoas, e os outros textos da coletânea deixam evidente a natureza e importância dessas relações de vida.
Se por todos esses motivos é impossível pensar esse livro sem os trânsitos de que é fruto e encerra, faço então a segunda proposta de leitura: sendo essa uma trajetória (e poesia) belenense-berlinense, que transita por esses lugares sem se entregar à pureza de nenhum, que cosmopolitismo a define?
O atual chanceler brasileiro, representante do núcleo ideológico-diversionista [nota 3] do governo Bolsonaro, é um dos atores que centra sua pauta (desde o discurso inaugural até a aula magna do Instituto Rio Branco) em torno da crítica ao globalismo [nota 4]. O termo, segundo postagem de seu blog, se define como “a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural” e que “é um sistema anti-humano e anticristão”, donde se conclui que “a fé em Cristo significa, hoje, lutar contra o globalismo”. Para além do firehosing antilaico, um dos primeiros efeitos dessa postura foi o telegrama do dia 8 de janeiro retirando o Brasil da lista de signatários do Pacto Global sobre Migração da ONU, que lida com as 68 milhões de pessoas em movimento no mundo hoje, segundo avaliação da organização.
No ensaio O cosmopolitismo do pobre (2002), Silviano Santiago distingue duas formas de multiculturalismo: a antiga e a atual. A primeira é aquela “cuja referência luminar em cada nação pós-colonial é a civilização ocidental tal como definida pelos conquistadores” (p. 54) e que, no caso brasileiro, ganha corpo no Gilberto Freyre de Casa-grande & senzala, segundo o qual as diversas etnias e culturas que formam o Brasil se cruzam patriarcal e fraternalmente “para constituir uma outra e original cultura nacional, soberana, cujas dominantes [...] foram o extermínio dos índios, o modelo escravocrata de colonização, o silêncio das mulheres e das minorias sexuais” (p. 56).
O novo multiculturalismo, por outro lado, seria consequência do que a socióloga Saskia Sassen, citada por Silviano no ensaio (p. 58), chamou de “desnacionalização do espaço urbano e da política”, associados a crises da relação das identidades individuais com os estados-nação no capitalismo mundializado, o que inclui o trânsito de mão de obra. Esse novo tipo de multiculturalismo, por fim, acontece para Santiago na característica internacionalista de articulação e luta de associações que pretendem “(1) dar conta do influxo de migrantes pobres, na maioria ex-camponeses, nas megalópoles pós-modernas (...) e (2) resgatar, de permeio, grupos étnicos e sociais, economicamente desfavorecidos no processo assinalado (antigo) de multiculturalismo a serviço do estado-nação” (p. 59).
As relações com o presente são evidentes e ajudam a analisar algo da situação cultural em que o livro de Age vem a público: se em regimes de extrema-direita europeus um dos alicerces discursivos do poder é o culto à origem mítica autêntica da identidade nacional, no caso brasileiro parece que esse mito de origem é muito intensamente baseado no multiculturalismo antigo para que o poder remeta à pureza: o que existe é a tolerância da diversidade desde que submetida à norma geral e abstrata (ela, sim aparentemente impessoal e pura ou explicitamente religiosa) do neocolonialismo.
Diante do nacionalismo que delimita a fronteira do território para controlá-lo, a poesia de Age propõe uma gramática entre lugar e des-lugar (longe,/ em Desbelém,/ soltas as rédeas dentro da noite escura) baseada no encontro. Dentro do mercado internacionalizado, o poema experimenta com formas em que a amizade, essa fraternidade, é motor da construção do sujeito e do mundo, como se tem a oportunidade de ler nas muitas cartas e ensaios compilados na seção “4. Cartas: correspondência e avulsos” de todavida, todavia.
No Naschmarkt, mercado popular que existe desde o século XVI em Viena e onde se encontra de tudo, até castanha do Pará, um poema do livro Caveira 41 (2003) desfolha a bandeira. Em resposta ao José de Alencar do multiculturalismo antigo e colonizado de Iracema, que pergunta se “o povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pera, o damasco e a nêspera?”, Age lê na amêndoa, no damasco e no figo do mercado os versos:
Naschmarkt
No olho da amêndoa,
no damasco, exposto
numa lágrima de figo,
sabes: eu não sou daqui,
nunca cheguei,
nunca
saí daqui.
Caroço sem carne,
só osso, os
cernes
dessa verdade. E a verdade, circum-
aberta no coração,
desfechada
no coração,
de pé
se despe: abre-se
em gumes, cordialmente.
Cordial, palavra tão ligada às interpretações nacionais feitas a partir de Raízes do Brasil, que em uma das suas acepções significa “comida que estimula o coração”. No caso, a faca cujo gume substitui o gomo, talvez da tangerina de que fala Ferreira Gullar, antimineral, antissilenciosa, faca que não corta: liga, como quando para o mesmo poeta maranhense “Amigos morrem,/ as ruas morrem,/ as casas morrem.// Os homens se amparam em retratos./ Ou no coração dos outros homens” [nota 5].
Por fim, na poética do encontro, não parece gratuito que o próximo projeto da dupla, Age de Carvalho & Mayara Ribeiro Guimarães, anunciado em todavida, todavia (p. 236), seja uma edição da correspondência mantida por 28 anos entre ele e seu amigo Max Martins. Seguimos na escuta.
NOTAS
[nota 1]. A imagem é do filósofo e dramaturgo Patrick Pessoa, que a usou em um encontro sobre processo criativo e escuta na Oficina Experimental de Poesia, no Rio de Janeiro, em 2017.
[nota 2]. Formulação de Rafael Zacca no posfácio Escrever a escuta do livro Naharia (2017), de Guilherme Gontijo Flores (p. 82). Agradeço também ao Zacca por uma série de discussões que aparecem direta e indiretamente nesta resenha.
[nota 3]. Conforme precisa interpretação do professor Silvio Almeida em seu perfil no Facebook do dia 4 de janeiro que discute a imbricação entre distração, ideologia e ação política, em especial nos domínios jurídico e econômico. Até o fechamento desta edição, a postagem estava aberta a todos os leitores. Disponível no link: facebook.com/silvio.almeida.5/posts/2318840238135928.
[nota 4]. Enquanto os generais mediam a crise venezuelana e se fazem representar no Grupo de Lima.
[nota 5]. Poema Improviso ordinário sobre a cidade maravilhosa, do livro Na vertigem do dia (1980).