O.sr.piglia mai19 reproducao

 

 

DO TEMPO

Em uma quarta-feira, 4 de outubro de 2017, escrevi para este Pernambuco aquilo que foi o resultado da minha experiência de leitura dos três volumes dos Diários de Emilio Renzi, escritos por Ricardo Piglia. Passado um ano e meio, volto a ler um dos volumes, o segundo, Os anos felizes, que sai agora no Brasil pela editora Todavia. Uma das tarefas a que me proponho enquanto escrevo estas linhas é descobrir o quanto o tempo mudou minha percepção do livro.

Destaca-se, nessa segunda leitura, a segurança de Piglia no que estava fazendo. Há claramente um projeto literário que se consolida neste segundo volume. Um projeto que parte da forma do diário para pensar a literatura e fazer literatura. Anos felizes porque são anos de um escritor maduro: “apesar de tudo é uma época afortunada”. Seus principais interlocutores (reais e imaginários) são Jorge Luis Borges, Manuel Puig, David Viñas, Roa Bastos e Roberto Arlt. Mas não é só um projeto literário. É, também, um projeto de vida. Um escritor que tenta ganhar a vida como tal: “projeto absurdo e impossível neste país”.


DOS DIÁRIOS

Nessas páginas que abarcam os anos de 1968 a 1975 são muitas as referências a dois diários: o de Kafka e o de Cesare Pavese. Ricardo Piglia os lê como romances com múltiplos personagens e é assim que constrói o diário do seu alter ego, Emilio Renzi. Aqui, cabe de tudo: ensaio, conto, crítica literária, sonho, autobiografia, observações sobre o mundo: "Época estranha, paira no ar um astronauta, em sua cápsula". O livro começa com uma digressão do narrador sobre o que é um diário, que, segundo ele, é a ordenação de um escrito por dias, meses e anos. Falar da escrita do eu, segundo Renzi, é uma ingenuidade, pois o eu é uma figura oca. O sentido deve ser procurado em outro lugar. No caso de um diário, por exemplo, o sentido deve ser procurado nessa classificação cronológica. Kafka dizia que só quem escreve um diário pode entender o diário dos outros. Enquanto Pavese escreveu: “Só quem joga com a ideia do suicídio pode escrever um diário convincente.” Como sabemos, o escritor italiano se matou em 1950.

Quem conhece a obra de Ricardo Piglia conhece também a sua obsessão pelo secreto, pelo complô, pela investigação. Esse é um outro elemento que embora não seja citado, está sempre presente nos diários de Emilio Renzi. Afinal, todo diário é até certo ponto secreto. É um romance secreto ordenado por dias que se escreve em silêncio. Em dado momento Renzi fantasia com a possibilidade de o diário ser descoberto por uma mulher. Esse seria um dos motivos de continuar a escrevê-lo.

Emilio Renzi lê livros, dá palestras e entrevistas, escreve artigos e contos: “O duplo que sustenta a escrita: o outro escreve e eu assisto ao seu trabalho”. Lemos passagens como: “Uma versão possível de Hamlet, que não se interroga sobre a presença do pai morto e seu fantasma, apenas duvida de sua própria realidade. 'Estou vivo ou morto?', pergunta-se o enlutado que se apoia na repetição do verbo to be".


ROMANCE SECRETO

Assim temos esse romance secreto de um escritor com consciência ainda maior do seu trabalho de escritor e um gênero literário com vasto território a ser explorado por seu autor. E isso ele faz bem. Vai das reflexões sobre a literatura ao retrato da Argentina do seu tempo. Do guia de bares de Mar del Plata e Buenos Aires ao esboço dos seus contos e romances. Uma autobiografia sempre se refere  não ao que aconteceu, mas àquilo que deveria ter acontecido, escreve Emilio Renzi. Em uma das entradas há uma menção sobre o conto O nadador, de Piglia. No diário, lemos que narrar é como nadar. Os contos são a velocidade do crawl. Mas “há algum tempo quero escrever como quem nada no mar e não tem um limite, a não ser o próprio cansaço”. Talvez esteja aí uma boa definição para o projeto desses diários. Renzi, em outra entrada, escreve que a literatura nos mostra a opacidade do mundo porque nos permite conhecer as pessoas por dentro. "Eu conheço melhor Anna Karenina do que a mulher com quem vivo há anos". Mais à frente, em 1973, Emilio Renzi trabalha em um ensaio sobre o romance. Anota uma observação a partir de Brecht: a obra de Kafka só é possível graças à leitura de uma passagem de Os irmãos Karamázov. Com uma chave e outra passeamos pela literatura tendo Renzi como guia.

“O que eu ia dizendo sobre o jornalismo cultural volta a reforçar minha ideia de que a revista Los Libros deveria se dedicar a criticar a seção de resenhas dos jornais e revistas, analisar os suplementos culturais etc. Estamos na época da crítica da crítica da crítica.”


DOS GOLPES

Da leitura deste segundo volume fica a certeza de um autor que ensina a pensar. Um professor. Um professor em meio ao terror que se inicia.

“Escutam-se marchas militares. Abro a janela, é como se um circo se aproximasse.”

“Desço para comprar comida; na venda, clima de euforia; Levante na Aeronáutica, o golpe militar está em curso. Sensação de velhas catástrofes, primeiro pensamento: 'fico em Paris.'”

“Estou em Mar del Plata rodeado pela família, vim ver minha mãe para as festas como todos os anos. Só faço ir ao mar.” Como se citasse Kafka: "A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde fui nadar”.

Ler estes diários é mergulhar nas suas centenas de tramas microscópicas, mas luminosas. O narrador e o nadador estão em uma obra grande como um oceano. A superfície é clara e límpida, mas o fundo dá medo.

À certa altura, Renzi escreve que seu ideal sempre foi ser Robinson Crusoé. A ideia do isolamento, do espaço intransponível. Ele recorda o efeito que a leitura do livro de Daniel Defoe provocou no seu pai. Ele lembra a fantasia que havia em viver em uma ilha deserta e a felicidade que isso trouxe.

“A inspiração é um modo de nomear a capacidade de o escritor se esquecer de si mesmo e passar para o outro lado (da linguagem).”