Escrevo em um momento em que o Brasil arrisca conflitos armados na região de fronteira. Espero que, quando este texto for publicado em abril, o conflito tenha se encaminhado para uma negociação responsável; no momento, penso apenas nos amigos da fronteira Norte e em Roraima, estado em que vivi e atuei como professor por um ano e meio.
Como professor, viajava por diferentes cidades do estado, nos campi descentralizados da Universidade Estadual de Roraima. A partir de Boa Vista, ia da universidade pela BR-401 até Bonfim, na fronteira com a Guiana; pela BR-174, ia na direção sul até os municípios de Iracema, Caracaraí, Rorainópolis e São João da Baliza. Pela BR-174, em direção ao norte, fui algumas vezes a Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, em eventos da universidade ou – como muitos faziam – para fazer compras no lado venezuelano.
Esses locais têm aparecido no noticiário, primeiro por conta da crise de refugiados, agora pela ameaça de um incidente militar. Ausentes dos jornais, me parece, estão os conflitos que delimitaram a formação do território fronteiriço, conflitos que continuam ainda hoje. Ausente está a razão de existir o município de Pacaraima, emancipado de Boa Vista em 1995 para tentar barrar a demarcação de terras indígenas (TIs) – artifício usado na criação de municípios como Normandia (em 1982) e Uiramutã (1995), todos a partir de pequenas vilas situadas em regiões que se tornariam parte da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. [nota 1]
Em Roraima, a construção de estradas deixou caminhos de genocídio e etnocídio. A abandonada Perimetral Norte resultou no genocídio de populações yanomami [nota 2]. A parte sul da BR-174 trouxe o genocídio dos waimiri-atroari, nos anos 1970. Sua parte norte, de Boa Vista até Pacaraima, resultou em processo etnocida contínuo sobre as populações das TIs São Marcos e Raposa Serra do Sol que vivem próximas à estrada. Rechaçada pela maioria das religiões neopentecostais que adentraram as aldeias, negada por boa parcela da população (em sua maioria migrantes que vieram em ondas sucessivas de garimpo e reforma agrária colonizadora), a cultura indígena de Roraima sobrevive e se recria em meio a um longo processo de violência contínua.
Panton pia’: registro na Terra Indígena São Marcos (2019), coordenado por Devair Fiorotti, primeiro volume de quatro projetados para a série Panton pia’ (pantonpia.com.br), é resultado de anos de pesquisas junto a indígenas no entorno de Pacaraima. Embora esse volume se concentre na TI São Marcos, o estudo abrange comunidades da TI Raposa Serra do Sol, que farão parte dos volumes posteriores. No tomo publicado, há testemunhos orais dos povos macuxi e taurepang, com alguma presença wapixana. Todos são povos do que se convencionou chamar de circum-Roraima, o caldo de culturas que vivem ou viveram no entorno do Monte Roraima (fronteira Brasil-Venezuela-Guiana) e que compartilham histórias e crenças. O livro está disponível para download gratuito aqui.
Uma das figuras que transitam entre esses povos é Makunaima [nota 3], o demiurgo que, a partir de uma coleta de narrativas feita por Theodor Koch-Grünberg junto aos povos taurepang e arekuná entre 1911 e 1913, resultou na criação do Macunaíma de Mário de Andrade [nota 4]. A busca por figuras como Makunaima e por narrativas dos tempos antigos estrutura as entrevistas que compõem este primeiro volume de Panton pia’. A partir da metodologia da história oral, Devair entrevistou figuras de referência em comunidades da São Marcos – anciãos ou lideranças conhecidas como tuxauas. A pesquisa trouxe relatos de violências, físicas e simbólicas, que resultaram na perda das línguas e narrativas, e também na transformação dos hábitos.
Para o livro, Devair fez uma opção corajosa: registrar na íntegra as entrevistas que realizou. Por muito tempo, a publicação de histórias indígenas buscou isolar as narrativas ou “mitos” de seu contexto discursivo e performático. Em coletâneas como a de Koch-Grünberg, as histórias são estilizadas ou recontadas, perdendo marcas da oralidade (como as repetições). Considerava-se que os “mitos” valiam pelo que era narrado, não pela forma de se contar. Assim, livros importantes como a série Mitológicas, de Claude Lévi-Strauss, operam com resumos de “mitos”. A partir de trabalhos dos anos 1960 e 1970, como os de Ruth Finnegan, Jack Goody e Paul Zumthor, passou-se a valorizar o estilo oral e a performance. Publicações posteriores tentaram emular características do discurso falado na publicação escrita.
Um exemplo pode mostrar a força dessa opção. Em Panton pia’, o taurepang Clemente Flores conta uma história de Makunaima que corresponde, em linhas gerais, a partes das duas primeiras narrativas editadas por Koch-Grünberg em seu livro. Nelas, a história de Makunaima e seus irmãos é a da criação dos alimentos, de uma grande árvore – na versão de Clemente, uma bananeira – que traria abundância de frutos e peixes para o mundo. O toco da árvore viraria o Monte Roraima. Na história, está a origem das listras do dorso da cutia, que é um dos irmãos de Makunaima (Clemente Flores o chama, em português, de Cutia; na versão recolhida por Koch-Grünberg, ele é Akúli, nome do animal em arekuná). Uma breve comparação das versões pode mostrar a riqueza da linguagem oral quando transcrita:
“Akúli tinha-se arrastado para dentro do buraco do tronco, onde escondera as bananas. Queria salvar-se da grande enchente e tapou o buraco. Fez um fogo dentro do buraco e se aqueceu nele. O fogo, porém, pegou no seu traseiro e se transformou em pelo ruivo. E Akúli, até hoje, ficou com o traseiro coberto de pelo ruivo.” (Koch-Grünberg extraído de Makunaima e Jurupari, de Sérgio Medeiros, p. 62)
Agora, a versão do Panton pia’ (p. 35-37):
“Aí, ele amontoava cera, cera de mel. Como essa Cutia fez? Conseguiu um pau cheio de oco por dentro. Tu sabe que ele tampou todos os buracos que apareceram com essa cera viva que ele ajuntou da abelha. Fechou, amontoou lenha, amontoou banana que tava recém-caída, verde, tudo amontoou dentro do oco de pau. E ficou lá, enterrado. Ele se preparou, esse Cutia se preparou. Os outros Macunaima, Xicö não, não se prepararam não, não se preveniram. (...) A Cutia abriu esse oco de pau que tava dentro. Abriu, saiu. Essa aqui traseira (passa a mão nas nádegas) ficou encarnadinha por fumaça, por causa da fumaça. Essa é a história de Macunaima. Essa é que é a história de Macunaima. Cutia não era assim não. Era branco... parece que era ou preto, não sei. Agora, quando... com essa fumaça, ficou tudo amarelinho assim (...) Fumaçado, amarelo a partir daquele momento. Aí foram embora. Chegaram. Este toco aparece aqui no Monte Roraima, até agora aparece. Nós chamamos, na nossa língua, wadakapiapö, wadakapiapö (...). Esse pé de banana se chamava wadaka. Tu sabe que é enorme, é grande esse pé de banana que chamavam wadaka, piapö é toco. Aqui, por aí, ficou essa história porque pra lá, mais pra trás, não estou sabendo, não sei como continuar.”
A entrevista transcrita preserva elementos de oralidade que permitem manter o caráter dialógico da narrativa oral, sempre direcionada a uma audiência específica, a pessoas que o narrador imagina que saibam ou não informações relevantes para a história – e daí a necessidade de explicar, ir e voltar, comentar o vocabulário. Também estão presentes indicações da performance que acompanha a narrativa, como a descrição de gestos entre colchetes. Em outros momentos, há falas de pessoas que resolvem participar da conversa, como acontece em situações de oralidade.
A entrevista de Clemente Flores é a que mais traz histórias antigas, como a maravilhosa origem do timbó, cipó venenoso usado na pesca. Em outras entrevistas, nota-se o esforço do entrevistador em buscar, nas memórias dos indígenas, histórias que foram reprimidas pela cultura do branco. Nota-se, também, como os indígenas ressignificam o seu papel numa sociedade em mudança, assumindo posições frente ao que significa ser indígena, à atuação dos órgãos indigenistas, à educação dos seus povos, à preservação ou revitalização das línguas. Registrar as entrevistas na íntegra mostra que a oralidade indígena não é só narrativa ou “mito”, mas também reflexão, ensaio, autobiografia, visão de mundo.
As descrições do cotidiano são especialmente tocantes. Na fala abaixo (p. 123-124), o tuxaua macuxi Armando Magalhães responde qual a coisa mais feliz que lhe tinha acontecido:
“Quer dizer, feliz como eu acabei de dizer, professor, é quando a gente tá de bucho cheio, nós temos a vida feliz. Quando se tá com fome, rapaz, fica agoniado, fica triste: ‘Rapaz, como é que é?’ Não sei; o cara fica quase doido, né? Mas, se tá de barriga cheia, as crianças estão alegres, a esposa tá satisfeita. A gente como esposo tá satisfeito, vê toda família com o buchinho cheio, que coisa, né! É uma coisa boa, quer dizer que é uma vida de alegria, que eu acho. Dali vem alegria; dali o cara vai pra um lugar com o buchinho cheio, satisfeito; vai sorrindo das coisas. Mas, quando tá com fome, coitado, só anda enrolado. Só anda enrolado, porque não tem jeito de ter alegria. Ele fica triste cada vez mais: ‘Puxa vida onde que... será que alguém vai me dar alguma coisa pra comer hoje? Puxa vida, colega, eu estou sem dinheiro!’ Mas é ruim, já passei nessa. Quando a gente tá sem dinheiro, rapaz, já tenho me virado aqui na cidade um pouquinho. Ainda bem que eu tenho uns créditos por aí nos comércios: ‘Me dá, patrão, eu estou devendo, mas eu quero mais aí, rapaz, fim do mês eu lhe pago.’ ‘Nada, pode pegar aí, não se preocupe não, pega aí.’ Compro alguma coisa, pego como eu falei. Então, naquele dia nós estamos alegres, com barriguinha cheia…”
Essa fala evoca uma longa história de dor que veio com as fazendas, estradas, cidades. No processo colonizador, tais espaços retiraram a autossuficiência alimentar desses povos, afugentando a caça, poluindo a água dos rios, substituindo a área de roças por pasto para gado, e criaram uma situação de dependência da qual não parece haver saída – se não há dinheiro, vendendo pedra ou madeira (o que o Estado proíbe), ou criando gado, ou trabalhando para fazendeiros, ou recebendo de programas como o Bolsa Família, não há comida.
Conseguir sentir felicidade nessa dor, por outro lado, manifesta uma capacidade de resistência e reinvenção que está além do que consigo imaginar. Consta que o tuxaua Armando Magalhães ainda está vivo nos arredores de Pacaraima. Espero um dia encontrá-lo para agradecer pelo que vejo como um dos textos mais lindos de nossa literatura contemporânea. E espero que, até lá, as relações de poder entre os países não tenham levado a essas pessoas mais uma dor, a da guerra.
NOTAS
[nota 1]. Referência fundamental para compreender o processo de demarcação contínua da Raposa Serra do Sol é o livro Pemongon Patá (2001), de Paulo Santilli. O romance Os bravos de Oixi (1994), de Vilela Montanha, documenta parte do processo de violência dos anos pré-demarcação. Após passar a assinar como José Vilela, o autor reescreveu o romance duas vezes – Xununu Tamu (1998) e Índios em luta pela vida (2019).
[nota 2]. Esse processo é pano de fundo de alguns capítulos de A queda do céu (1995), de Davi Kopenawa e Bruce Albert. O romance-testemunho Wadubari (1993), de Marcos Pellegrini, que atuava como médico junto aos yanomami, também traz algo da dimensão do horror vivido por essas populações.
[nota 3]. Sigo Sérgio Medeiros (Makunaima e Jurupari: cosmogonias ameríndias, de 2002) em utilizar Makunaima com k, para o demiurgo das culturas do circum-Roraima, em contraste com Macunaíma, com c e acento no i, para o personagem de Mário de Andrade. Dentro do livro Panton pia’, o nome aparece grafado com c e sem acento, como se vê nas citações reproduzidas.
[nota 4]. As narrativas foram publicadas em 1917 como segundo volume de Vom Roraima zum Orinoco, livro que chegou às mãos de Mário de Andrade. Uma tradução das narrativas pode ser encontrada na obra citada na nota anterior.