Imagine um livreiro. Ele acaba de receber um novo lote, só com escritores obscuros. Amanhã a loja abre cedo, e ele tem pressa para separar os livros, arrumar as prateleiras, catalogar os achados. Depois de consultar a internet e as fichas catalográficas, ele começa a etiquetar as novidades: romance brasileiro, contos argentinos etc. Agora imagine que uma dessas fichas foi comida pelos cachorros. Que a internet saiu do ar. Ou então que o livreiro, confiando no instinto e no sexto sentido literário, intrigado com o título machadiano de uma das obras, resolva ler A invenção dos subúrbios, de Daniel Francoy (foto), antes de definir qual lugar na estante o livro vai ocupar.
Logo de cara, ele sente que está lendo um diário. É que os breves capítulos têm a aparência de um caderno de notas. Além disso, é o próprio Francoy quem está falando: sobre si mesmo, mas principalmente sobre o marasmo e os encantos da cidade onde vive, Ribeirão Preto, reinventada literariamente como subúrbio. A dicção é elegante, espirituosa, uma voz que lembra a de alguns diaristas da nossa tradição literária, como o conselheiro Aires e o amanuense Belmiro. Agrupadas conforme os meses do ano, as entradas não seguem a retidão da cronologia: num salto, recuamos de 2017 a 2015, pulamos para 2018, retrocedemos a 2013 e assim por diante. O procedimento funciona, seu efeito é potente: um ano se multiplica em cinco, e é como se sentíssemos na pele a letargia dos dias se consumindo, indistintos. Ou como se, tateando a rugosidade do mundo, percebêssemos num estalo que o novo é uma variação do que sempre existiu, e nada passa, e nunca saímos do lugar.
“Turista do tédio”, flâneur, sempre circulando entre postos de gasolina e praças de alimentação de shoppings e hipermercados, o narrador de A invenção dos subúrbios percorre Ribeirão Preto com um bloquinho no bolso e a câmera do celular sempre a postos. Sua acuidade visual impressiona. O texto é atravessado por fotografias sugestivas: uma sapataria mal iluminada, panos de prato estendidos no varal, um cachorro magro se contorcendo junto ao vaso de plantas. As imagens cortam a narrativa sem ilustrá-la, sem didatismo, e ajudam a compor uma atmosfera, a criar um clima de prostração e estranheza.
Envolvido com o relato, o livreiro tem a impressão de que A invenção dos subúrbios talvez se acomode melhor na seção de crônicas. Isso porque Francoy não se pinta como personagem: seu interesse está voltado para fora, para a “vida ao rés-do-chão”. Ele “pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”, como escreveu certa vez Antonio Candido. Os lugares e situações que Francoy nos exibe são prosaicos. Mas ele os filtra com as lentes do afeto, e é por isso que nos comovemos com a tristeza de pastéis de carne sem ovos cozidos no recheio, com uma envergonhada mortadela servida em palitinhos no restaurante que já foi esnobe, com o brio do atendente em uma lojinha de carimbos fadada à ruína, com a deselegância modernosa de um “hortifrúti que ficaria ofendido de ser chamado de quitanda”.
Francoy está mais para retratista da desolação humana do que para cronista, cogita o livreiro: “um pintor imitando Hopper imitando a realidade”, ele lê numa passagem. Sabemos que são os bairros de Ribeirão Preto retratados ali, que são suas ruas, suas ruínas urbanas, os seus sonâmbulos, uma forma toda peculiar de miséria. Mas bem poderia ser a Tijuca, no Rio de Janeiro; o bairro Fonseca, em Niterói; o Iapi, em Salvador – variações realistas da distópica Orão, de Camus. O subúrbio de Francoy é menos um espaço histórico do que um lócus imaginário, parte da geografia subjetiva: ele existe onde quer que se esparramem os desertos do tédio, as planícies do desânimo, onde quer que o fracasso se imponha como regra e a desistência se revele uma alternativa sensata à dureza da vida.
Ainda assim, não se trata de obra pessimista. A exemplo dos narradores de Machado, Francoy oscila entre a melancolia e a galhofa, entre a resignação e o riso. Como costuma ser o caso com a boa literatura, A invenção dos subúrbios não espelha a realidade propriamente: o livro traceja uma visão de mundo, insinua uma resposta estética aos malogros da existência. “Sim, é preciso que alguém nos diga que aqui não é um lugar de milagres. E é preciso que outro alguém nos diga que tudo vai ficar bem.” A vida é horrível, mas é boa, é bonita e sempre acaba mal – de resto, nos ajeitamos como podemos.
Sem saber o que fazer com o livro, como ordená-lo em suas estantes, o livreiro o lança em um balaio qualquer, sobre uma pilha de títulos à venda desde sempre: best-sellers esquecidos de Harold Robbins; A pele, de Curzio Malaparte; Os irmãos inimigos, de Nikos Kazantzákis. Ali ele vai permanecer por um bom tempo. Exposto, sujeito às intempéries. Até se desfazer em pó. Ou até encontrar os seus leitores.