Lubi.Prates mar.19 Mayara.Barbosa.Divulgacao

 

Pode um corpo negro escrever(se)?

Com que pesar, humilhação; com que direito?

Repito o título até que a carne se saiba a azeviche-sangre: um corpo negro.

Um corpo negro na pena de uma mulher é uma bomba-ameaça ao monumento de barbárie língua & cultura: este corpo escreve!

Um corpo negro escrevivente está no ringue; balança, te olha, dá uns pulos à esquerda, estala o pescoço. Te olha como ensina o velho professor Miyagi – até te ter o corpo em mãos. Você pode sentir o que virá num cruzado direto: um corpo negro, olhares do ódio: questão de semiótica –
 
sequestro roubo navio negreiro chicote escravidão estupro violência igreja obediência sem-alma macumba imundície macacos volúpia puta pornografia preguiça preta fedida favelada cabelo ruim desidentidade embranquecimento farda apagamento assassinato subemprego hospício presídio chacina genocídio holocausto // vitimismo

          [se você tem um corpo negro, pode colocar um sem-fim de palavras aqui]

...

Olhamos um corpo negro. Banhado a óleo, exposto ainda agora.

Olhamos o corpo até que lhe retiram a terra, a sangue. Cruzam nove vezes as árvores do esquecimento, cruzes, atlânticos, até não ser sequer um nome.
Abrimos o livro, corpo-território: questão de poder – 

[...]
meu corpo
eu nomearia
território

se pudesse
inventar
um idioma próprio
[...]

Língua e voz historicamente ausentes, impedidas de cantar, mas as palavras... a palavra poema é uma feitiçaria a poeta diz UM CORPO NEGRO e como dissesse ABRACADABRA presentifica o canto (mais que lamento); sua escrita poemiza e se inscreve como potência do pensamento, máquina de guerra, “a obra de arte, assim compreendida, é essencialmente produtora de certas verdades” [nota 1] – não àquela verdade brancofalocêntrica, a verdade da poema que nos abre também às suas forças e tensões, até que produza sentidos e efeitos que criam um pensamento-bomba: uma poema é uma teoria –

repetem repetem
mátria
com tanta certeza
como se a palavra
existisse
no dicionário
o último lugar de validação
[...]

Uma poema é um jogo de capoeira, um merindinlogum, um quilombo, renascendo sempre sobre novas formas até se abrir o corpo em terreiros-lugares:

[...]
você nunca esteve diante do horror

você traz os olhos arregalados
e você nunca esteve diante
do horror,

você nunca viu uma cidade bombardeada
uma cidade destruída
uma cidade esvaziada pela guerra.
[...]

Leio este um corpo negro e lembro que quando editava “tambores pra n’zinga” um editor sugeriu que mudasse o título, pois com referências tão escuramente negras poderia afastar possíveis leitores que não são sensíveis (!) ao tema. Ô senhor dono da língua portuguesa branca genocida, tenha nervos! Um corpo negro não é apenas um jongo de se jogar em umbigadas negras.

Um corpo negro... como pode um outro corpo atravessar este livro?

Corpo de poema: questão de política –
 
A realidade de um corpo negro não se explica de fora para dentro – sua escritura poemática constrói rearranjos materiais de imagens e signos que geram um curto-circuito na nossa capacidade de compreensão do mundo, do mundo agora! aí está sua potência essencialmente política. O corpo se abre e não é um espelho, um documento histórico, representação apenas: os efeitos dessa escritura rasuram nossos olhos - o real, o ancestral, o particular. Isto é uma poema! a partilha sensível do comum; “os textos não precisam de efeito sobre a vida de vigília, a transformam, vida mais que diurna: vida múltipla, todas suas vidas de noite e todas suas vidas de poesia” [nota 2].

          Mas uma mulher negra, um corpo negro, com que direito?

ser mulher é uma benção
ser mulher é poder gerar & poder parir
ser mulher é ter buceta, dois seios, uma bunda grande

ser mulher é
ser loira, olhos claros, nunca descabelar-se
é ter sangue escorrendo entre as pernas & não
          [deixar que percebam mesmo que
você corra
você nade
você dance

ser mulher é uma benção
e desde a Bíblia é ser apedrejada queimada morta
uma contradição

eu descobri agora que
não sou mulher

estou viva
nunca queimada
nunca apedrejada
[...]

A condição de se negar, de não se reconhecer no espaço fora da poema (como quem se estranha a si mesma), ocorre em sua experiência pela criação de contra-espaços, para além da experiência do sujeito, que reconhece sua alteridade não só no espaço que vive, mas em alguma outra coisa que excede o lugar, que não está fora nem distante, mas num outro nível de apreensão, um espaço de diferença, onde se pode criar como alternativa e resistência a espaços privilegiados de uma verdade branco-colonialista. Assim te atravessa um corpo negro, em contraespaços criadores de identidades e alteridades.

Lubi Prates arma esse lugar de luta em seu um corpo negro, mas não um lugar-senso-comum como panfletos perdidos nas calçadas, e sim um objeto posto contra qualquer autoridade.

Venha ao ringue sabendo que sim, claro que dói, dói tudo o que sabemos e fingimos esquecimento; porém em poesia diz um verso “dói porque é bom fazer doer”. Venha ao ringue, um corpo negro, lugar outro que a poeta através da linguagem nos põe a lutar e podemos, enfim, habitar o lugar sem: a poema onde tudo pode um corpo negro.

 

NOTAS

[nota 1] DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

[nota 2]
CIXOUS, Héléne. La venue à l´ecriture. Paris: 10-18 editions, 1977. Tradução livre.

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