Toda antologia é fundamentada em uma vontade de intervenção. Às vezes, a antologia quer chamar a atenção para novos valores no campo literário, ou busca resgatar vozes esquecidas pelo processo histórico formador dos cânones. Outras vezes, uma escritora, ou escritor, é reapresentada(o) a uma nova geração de leitores com os seus “melhores textos”. Esses são apenas alguns exemplos da importância de uma antologia. Criá-la é um ato de política cultural, sem dúvida. Dessa maneira, não seria possível compreender a relevância da publicação de Doze ensaios sobre o ensaio, organizada pelo escritor e editor Paulo Roberto Pires, sem nos perguntarmos: qual o propósito desse livro?
A resposta à pergunta está contida no próprio título: ensaio. A obra possui também um caráter comemorativo – Doze ensaios sobre o ensaio celebra a publicação de 30 edições da revista Serrote, editada por Pires e publicada pelo Instituto Moreira Salles. E o foco da Serrote, é bom lembrarmos, consiste na publicação de ensaios. Todos os textos compilados em Doze ensaios sobre o ensaio foram publicados em alguma das edições da revista; apesar disso, a sua republicação em livro é oportuna, já que posicioná-los todos sob um mesmo teto garante que haja um foco na discussão proposta pelo livro. As temáticas contempladas pelos ensaios da Serrote são múltiplas, mas sempre me chamou a atenção um subgênero delicioso: o ensaio sobre o ensaio. Esse é o propósito da antologia, que é também um dos propósitos editoriais da revista: o de fomentar entre nós uma discussão sobre a prática ensaística.
Importante ressaltar que o debate proposto pelo livro não consiste em uma discussão acadêmica sobre a natureza desse gênero literário. Quem buscar um manual de escrita em Doze ensaios sobre o ensaio vai se decepcionar. Ao invés de modelos ou fórmulas, há angústia e senso de risco. É por dentro da própria experiência do trabalho com a palavra, da incerteza, da opacidade dessa experiência, que a reflexão sobre a natureza do ensaísmo acontece ao longo das páginas de Doze ensaios sobre o ensaio. Daí, a angústia, que injeta nas páginas do livro uma fascinante tensão intelectual. Não poderia ser diferente. Lemos ensaios mais pela travessia da linguagem, do que por um pragmatismo da consolidação de hipóteses.
É possível pensar no ensaio como uma livre reflexão, escrita, sobre uma experiência. Qualquer uma, aliás. O próprio Montaigne, escritor francês que criou, no século XVI, o gênero, escreveu sobre coisas tão díspares quanto sistemas políticos ou processos digestivos. Sem preconceitos temáticos, o ensaio se aproxima de qualquer vivência. A aproximação, no entanto, prescinde da necessidade de teorizações, ou do rigor de um método. Um ensaio debate ideias, sem sombra de dúvidas. Mas o faz com uma cadência aprendida com a poesia e a ficção. Por isso, penso que uma das melhores definições de ensaio está em um dos textos do livro, de autoria do escritor argentino Cesar Aira (foto): “Para que algo seja um ensaio, sempre tem que se tratar disso ou daquilo... e eu. Do contrário, é ciência ou filosofia”.
Nascido a partir dos escritos de Montaigne, o ensaio viaja até a Inglaterra, onde se aclima com muito vigor a partir daquele que podemos chamar de segundo pai do ensaísmo, Francis Bacon, que acrescenta ao nascente gênero um teor mais analítico, “objetivo”, do que o estabelecido pelo seu criador francês. Montaigne e Bacon – França e Inglaterra – estabelecem os dois pêndulos iniciais da prática ensaística. A etimologia da palavra aponta a encruzilhada. Jean Starobinski, um dos autores da antologia, nos lembra que a etimologia latina da palavra ensaio aponta na direção de dois sentidos: “pesagem exigente, exame atento, mas também o enxame verbal cujo impulso liberamos”. Após a leitura das reflexões de Starobinski, bem como das reflexões de John Jeremiah Sullivan, György Lukács, Max Bense, Cynthia Ozick, ou Cesar Aira, todos publicados em Doze ensaios sobre o ensaio, podemos perceber o nascimento e desenvolvimento do ensaio, em pleno século XVI, como uma resposta, um efeito colateral, um anticorpo, ao próprio nascimento e desenvolvimento da racionalidade moderna. O ensaísmo, não me entendam mal, não é “anti-moderno”; ele é, isso sim, o irmão caçula e rebelde da tese, do tratado, do rito acadêmico, da poética normativa.
Não por acaso, como atestam os ensaios de Alexandre Eulálio, Germán Arciniegas e Lúcia Miguel Pereira, o ensaísmo floresce em especial no território fluido da prática jornalista, bem como se instaura com força em países de contexto colonial e pós-colonial. O debate sobre identidades, a descoberta da nossa própria linguagem, a decifração do nosso impasse enquanto latino-americanos, por exemplo, se deram entre nós primeiro através do ensaísmo. Cabe assim, quem sabe, retomar, em uma clave contemporânea, o potencial do ensaísmo, cujas bases de circulação social foram afetadas, por um lado, pelas mudanças do jornalismo nas últimas décadas, e, por outro lado, pelo fetiche excessivo do “método” e da “teoria” nas humanidades.
No caso da universidade, não se preocupem, não defendo uma diatribe contra a academia. Ainda gosto das minhas normas da ABNT. Mas por que não pensar, também, à margem? Pensar em paralelo? Pensar os impasses contemporâneos por dentro de suas idiossincrasias, convidando o literário para uma dança de ideias e especulações? Aí, penso, se encontra a relevância da publicação de Doze ensaios sobre o ensaio, livro que se posiciona como uma refer ência importante para os futuros debates sobre o ensaio e seus caminhos no século XXI.
>> Cristhiano Aguiar é escritor e professor (Universidade Mackenzie), autor de Na outra margem, o Leviatã