ZbigniewHerbert dez.18 divulgacao

 

Poeta, ensaísta e dramaturgo, o polonês Zbigniew Herbert (foto), nascido em 1924 e falecido em 1998, é praticamente desconhecido no Brasil. Ele se posiciona, no entanto, lado a lado com outros grandes nomes da literatura polonesa, como Czesław Miłosz e Wislawa Szymborska, ambos vencedores do Nobel de Literatura. Sua obra é vasta e complexa, abrangendo vários gêneros em um arco de tempo de quase 50 anos, mas sempre mantendo a inquietação política em primeiro plano – uma herança de sua participação na resistência polonesa durante a Segunda Guerra Mundial. Chega em boa hora sua primeira coletânea de ensaios, Um bárbaro no jardim, de 1962, agora lançada no Brasil pela Editora Âyiné, com tradução de Henryk Siewierski.

“Fui a Lascaux no início da primavera”, escreve Herbert no primeiro ensaio. “Mais bonito, impossível”. Os textos da coletânea são sempre apresentados em primeira pessoa, um narrador que fala de si ao falar da paisagem, ao resgatar eventos históricos, ao analisar obras de arte, pinturas, monumentos, livros. Herbert sabe calibrar de forma muito precisa o uso da erudição e o uso da inocência, da percepção que se esforça para parecer fresca, quase infantil. Dessa forma, consegue aliar em seus ensaios tanto uma dimensão informativa, quase enciclopédica, e uma apresentação poética do mundo – um mundo que, no caso de Um bárbaro no jardim, é mundo arquiconhecido, pois suas viagens são quase exclusivamente pela França e Itália.

Contudo, a partir dessa inicial junção do poético com o erudito, Herbert acrescenta uma peculiar percepção do tempo. Fala a partir de seu presente, daquilo que vê, daquilo que está disponível para ele como polonês em pleno século XX, mas procura absorver também outros pontos de vista, arcaicos, distantes. “Para Homero, os países a oeste do mar Jônico eram domínio do maravilhoso. Porém, já naquele tempo, com a intervenção dos poetas, os heróis, as sereias e os deuses gregos se apropriaram das grutas, das ilhas, dos rios e dos litorais não gregos”, escreve ele no ensaio Entre os dórios, uma apresentação dos traços heterogêneos por trás da ideia de “Grécia”. Este certamente é um ponto que atravessa todos os ensaios do livro: o esforço de mostrar que toda ideia homogênea (seja ela o “gênio” de Van Gogh ou o “fanatismo” dos Templários) é feita de elementos variados, por vezes contraditórios, que se modificam ao longo da História.

É preciso ter em mente que o contato de Herbert com o mundo – especialmente nesse seu primeiro livro de ensaios, de 1962, em plena ocupação soviética de parte do Leste Europeu – se dá a partir de uma perspectiva da “destruição possível”. Ou seja, tendo vivido a Segunda Guerra Mundial e também a presença soviética logo após, Herbert sabe bem que as sociedades operam em ciclos alternados de construção e destruição, civilização e barbárie (daí a tensa imagem poética do título do livro). No ensaio sobre os albigenses (séculos XII e XIII), Herbert comenta tal oscilação, dizendo que “podemos contar nos dedos de uma mão os textos originais desses heréticos, o que não deixa de ser uma ocorrência nada excepcional na história da cultura”, pois “nem todas as obras escaparam dos fogos e areias da história”. Diante disso, e reverberando as ideias de Walter Benjamin sobre a História dos vencidos, Herbert aponta que “é preciso reconstruir o pensamento humano e o sofrimento a partir de destroços e fragmentos, fontes duvidosas e citações dos escritos de seus adversários”.

O que também chama a atenção no estilo de Herbert – que lembra aquele de W. G. Sebald, surgido tantos anos depois – é sua habilidade em conciliar a reflexão estética com a preocupação ética. Ou, ainda, sua profunda consciência de que esses dois polos jamais se separam. Uma bela paisagem, uma obra-prima (livro, quadro, igreja gótica etc.), indica sempre sua própria existência e também, ao mesmo tempo, seu uso coletivo, sua absorção por uma dada sociedade em um momento histórico específico. O modo como respondo à arte, parece dizer Herbert, indica e constrói o modo como respondo à sociedade. Uma anedota sobre André Breton, repassada por Herbert, é exemplar nesse sentido: “No verão de 1952, o famoso poeta André Breton, em visita às grutas de Pech-Merle, decidiu resolver o problema de autenticidade das obras pré-históricas com um método experimental. Simplesmente esfregou a pintura com o dedo e, vendo que o dedo ficou tingido, chegou à conclusão de que era uma falsificação, e bem recente”. Herbert, como artista completo da palavra e da observação, está sempre em busca desses detalhes reveladores, que descortinam toda uma visão de mundo em um único evento.

Em uma conferência de 1991, J. M. Coetzee, Nobel de Literatura de 2003, declara Zbigniew Herbert como um de seus “mentores intelectuais”, ao lado de Musil, Rilke e Pound. Coetzee diz que aprendeu com Herbert o valor do “estilo”, pensado como uma “atitude diante do mundo”. É preciso, portanto, celebrar Um bárbaro no jardim e torcer para que outros livros de Herbert sejam lançados por aqui.

 

>> Kelvin Falcão Klein é crítico literário e professor (Unirio), autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas