Após a leitura de Viver entre línguas – publicado, no Brasil, pela Relicário Edições – e poucos dias antes de conversar com a sua autora, Sylvia Molloy (foto), assisti ao último filme de Jean-Luc Godard, Imagem e palavra (2018). Rememoro essa sequência de acontecimentos e sinto-me, ainda no momento da escrita, curiosa e surpresa com as pequenas destruições emergentes em nossas vivências entre línguas. Não me parece factível tratar de identidades de fronteira, uma das chaves do bilinguismo, sem aludir ao que fica posto em escanteio e encaminha-se para destruição durante o processo do câmbio de línguas.
Em Imagem e palavra, Godard afirma que sempre estará ao lado das bombas, seguindo com os que enxergam na fratura um sistema modificador possível. Assim também vive o bilíngue, no barulho ensurdecedor de dois mundos que lhe pedem sinais de resistência e reafirmação, apesar da marca constante de uma quebra. Molloy escreveu Viver entre línguas em 2016, aos 78 anos, e morando há mais de quatro décadas nos Estados Unidos, onde leciona. A autora argentina, nome necessário para a compreensão do pensamento latino-americano contemporâneo, passou sua vida colecionando circunscritas destruições em seus modos de existir entre línguas.
No primeiro fragmento do livro, intitulado Infância, a narradora tenta definir como se deu sua apreensão do inglês, do francês e do espanhol: “Para simplificar às vezes digo que sou trilíngue, que me criei trilíngue, embora, pensando bem, a declaração complica mais do que simplifica. Além do mais, não é de todo certa: a aquisição dos três idiomas não ocorreu de forma simultânea, mas escalonada, e cada idioma passou a ocupar espaços diferentes, colorindo-se de afetividades diversas, talvez desencontradas”.
Do pai, veio a herança do inglês; da mãe, uma relação de ocultamento e resgate da língua francesa; e o espanhol figura como o idioma de seu país de nascimento, ou seja, de seu primeiro território. “A ideia de deslocamento faz com que nós pensemos na língua o tempo inteiro. Mesmo permanecendo imóvel no espaço, eu sempre estive me deslocando nesse aspecto da palavra. Quando saí da Argentina e fui morar na França, onde fiz o meu mestrado, ali foi o momento em que eu comecei a prestar mais atenção nesse meu movimento entre línguas”, conta Molloy. Na pista que nos resta da destruição, encontra-se esse espaço que não depende do movimento do corpo, mas, sim, de uma espécie de percurso de tradução e de exercício de memória.
SAPATOS VERMELHOS
Antes de iniciar a nossa entrevista, pedi desculpas à escritora pois gostaria de estabelecer o inglês como nossa língua pelos próximos minutos. Apesar de estudar e pesquisar literatura espanhola e latino-americana, minha relação com a língua inglesa atravessa toda a infância e adolescência. Por isso, ainda hoje, torna-se mais fácil transformar ideia em palavra, palavra em frase e assim por diante. Molloy riu e disse que tudo bem, tinha acabado de conceder outra entrevista em espanhol e “seria ótimo trocar de língua”.
Quando criança, a escritora estudou em uma escola na qual, durante a manhã, era obrigatório o uso do inglês – com punições para quem não obedecesse – e, à tarde, era incentivado o uso do espanhol. Porém, se alguém falasse em inglês, não seria um problema. “Não há castigo. O espanhol, comparado com o inglês, é uma língua desbotada, pelo menos para nós que a trazemos de casa. Como a mãe em Freud, é certíssima”, escreve no fragmento chamado Território. Assim, os embates linguísticos foram construídos desde os primeiros passos no mundo e, posteriormente, são fisgados durante os processos de rememorações.
A obra de Molloy encontra na memória uma espécie de base de fundação. “I have a pretty good memory”, me diz a autora com certo orgulho tranquilo. Ao longo de suas ficções – a ver: En breve cárcel (1981), El común olvido (2002), Varia imaginación (2003) e Desarticulaciones (2010) –, a presença da memória como temática e mecanismo criativo do texto é contínua. Alguns espaços argentinos, por exemplo, confundem-se bastante nos textos de Varia imaginación, tornando a relação entre quem escreve e a sua terra natal cheia de contradições e atravessada por lacunas comuns no passo a passo da lembrança. Já em Desarticulaciones, a narradora visita uma antiga amiga que está com Alzheimer e avança na condição de perda de suas memórias. Assim, algo precisa ser desfeito, ou esquecido como lembra Paul Ricoeur e Pascal Quignard em seus escritos sobre o tema. A mente, no livro, é desarticulada e ganha contornos novos e cada vez mais imprecisos.
Em Viver entre línguas, a memória faz menção não só ao “passado-cotidiano” de Molloy e às suas experiências nos Estados Unidos, mas também à memória de leitura. George Steiner, Alan Pauls e Vladimir Nabokov são alguns dos escritores citados sempre pelo viés da problemática da língua, do sotaque e da troca entre idiomas. Dessa maneira, como me explicou Molloy, vai formando-se uma sequência de cenas que são recapturadas também de suas leituras: “Eu não tenho muita imaginação, eu admito. Então, tento juntar algumas imagens que funcionam juntas, essa é a base da minha invenção, a fonte da minha escrita. Vou pensando em alguns detalhes, como as cores dos sapatos da minha mãe. (pausa) Na verdade, eu estou trapaceando. Lembre-se da famosa cena dos sapatos vermelhos, de Marcel Proust (em No caminho de Swan)...” conclui, sorrindo, Molloy.
Nesse contexto, é possível pensar em tal sistema onde a memória vem da língua e vice-versa. De volta à minha sequência de acontecimentos, penso no texto de Godard, em Imagem e palavra, quando ele, como narrador do filme, afirma que a língua não sobrevive tanto quanto a linguagem. Talvez, na perspectiva do francês, a ideia de língua esteja muito isolada do que pode vir a ser uma imagem ou a tornar-se a linguagem do cinema. A palavra que não diz tudo e precisa transformar-se. Penso que a obra de Molloy tensiona justamente a chance da língua em resistir às cenas da memória. Palavra e imagem, nos fragmentos de Viver entre línguas, são como um aviso de que as lacunas podem resultar em maneiras outras de falar do passado – o que me parece uma definição do que é literatura.
DESCOBERTAS – DESFAZER PARA COMBATER
A força da memória diante da imaginação, como refletido pela autora, também vem da oportunidade que se tem em desfazê-la. Quando o texto é trabalhado a partir desse tipo de abordagem – a junção de cenas “lembradas” e intercaladas, por exemplo –, existe um exercício de tecer ao contrário: soltar a linha para que, então, o que reste seja material de uma diferente construção da narrativa. Dessa forma, o trabalho com a temática da autobiografia e a forma de seus textos, muitas vezes, fragmentária, dialogam com essa forma de destecer o mundo.
No fragmento Fronteira, a narradora faz relação entre o processo de descostura e o lugar de outro que ocupa o bilíngue: “O bilinguismo explícito daquele que domina mais de uma língua – por hábito, por comodidade, como desafio, com fins estéticos, seja simultânea ou sucessivamente – torna evidente esta alteridade da linguagem. Esta é a fortuna do bilíngue, e é também sua desgraça, seu undoing: sua des-feitura. Lembro o que diz Nabokov de sua passagem ao inglês: ao traduzir Desespero, descobre que pode usar o inglês como a wishful standy do russo. A troca de um idioma por outro não está isenta de melancolia: ‘Ainda sinto uma pontada de dor dessa substituição’”.
Assim como as pequenas destruições, desfazer-se – seja da língua, seja da lembrança – tem o seu aspecto de angústia. Os pontos de ausência que são expostos para o laço social fazem com que o bilíngue vivencie a alteridade durante toda a sua vida entre. “Ser bilíngue é falar sabendo que o que se diz está sempre sendo dito em outro lugar, em muitos lugares”, escreve. O bilinguismo é, portanto, estar em vários lugares ao mesmo tempo e, no fim, não chegar, de fato, a nenhum deles. Jacques Derrida, em O monolinguismo do outro ou a prótese da origem, reflete sobre o uso do francês em sua vida como argelino e, por consequência, na vida de outros que passaram pela colonização europeia. O “não chegar a lugar algum” não se trata, como foi visto, de uma paralisação efetiva ou de movimentar-se como solução da angústia de que fala Nabokov. Em seu próprio território, em sua própria língua pode-se cambiar de lugar, basta encontrar-se em posição de vulnerabilidade cultural.
Na conferência de Derrida, a análise gira em torno de um tipo de “monolíngue-bilíngue”: como falar o francês, se ele também é a língua do meu opressor? Vive-se na condição de outro e, ao mesmo tempo, fala-se uma língua em comum ao hegemônico. Questiona o filósofo: “Como é que se poderia não ter senão uma língua sem a ter, sem ter uma que seja sua?” Trata-se das fronteiras de identidade, da língua como espaço de disputa. Língua e memória fraturadas. Desfazer para que se possa também combater. Apesar de demonstrar um viver entre línguas profuso, a obra de Molloy também demanda noções de poder, como quando narra o uso do espanhol de forma secundária em sua escola argentina, por exemplo.
A minha última pergunta em nossa conversa foi sobre os governos autoritários e ultraliberais que emergem na América Latina. De que maneira a literatura vai responder a esse cenário? Será diferente da resistência na década de 1960? Nas disputas do discurso, a língua, enfim, sobreviverá tanto quanto a linguagem? A escritora disse que não saberia muito bem como responder, mas que a escrita, diante dos governos monumentais e autoritários – como será o nosso, como é o dos Estados Unidos – tem o papel do undoing, ou seja, de desfazer o que for imposto pelo outro lado. E que se repita: desfazer para, enfim, combater. Assim, Viver entre línguas é uma maneira de empunhar a espada, mesmo que não se tenha uma única língua como sua, mesmo que o ser-bilíngue configure alguém alterado, sem equilíbrio exato. É por meio de um movimento de desvio que a língua se mexe e, desse modo, Molloy continua a sua descostura em direção ao microcosmo das desfeituras, das cores dos sapatos e das pequenas destruições: sempre ao lado das bombas.
>> Priscilla Campos é poeta, jornalista e cursa o doutorado em Letras Modernas (USP). É autora de O gesto