AlisonBechdel nov.18

 

 

Dois personagens em polos opostos de força: “Eu era a espartana do meu pai ateniense. A moderna do vitoriano. A masculina do afetado. A funcional do esteta”. Já aí está dado o truque em Fun home, de Alison Bechdel (foto). A autora nos induz a uma escavação de suas memórias mais íntimas com seu pai a partir de uma investigação relacional entre ambos: ela, a filha sapatão dele, a bicha enrustida. A proposta analógica e comparativa de ver o “outro” de acordo com os parâmetros sobre o qual o “eu” está sendo fundado é desde cedo estabelecida. Mas se engana quem, nisso que chamo de truque, imaginar que essa relação é, de fato, antagônica. Alison Bechdel e Bruce Bechdel são dois personagens que se chocam a todo momento; mas dos atritos que há entre eles surge muito mais ambiguidades do que molduras, muito mais negociações afetivas do que determinações castradoras do que é masculino ou feminino.

O livro que mais me fez chorar em 2007, quando de sua primeira tradução brasileira feita pela extinta Conrad Editora, está de volta em uma nova edição, desta vez pela Todavia. No momento em que escrevo sobre ele, tento respirar enquanto penso que entre 2007 e agora as coisas começaram a ficar tão estranhas, que Fun home, esse título irônico a fazer trocadilho entre casa e uma diversão fúnebre da vida (fun simultaneamente como “divertido” e como “casa fúnebre”, onde essa família-personagem morava) me parece, cada vez mais, um livro sobre o privilégio que é poder deixar ser realmente afetado pelo outro. Digo “privilégio” pois o recrudescimento do moralismo obediente fez um volume imenso de pessoas acreditar que essa capacidade de ser afetado deveria ser um item descartável no comércio dos bens fundamentais, um luxo que poucos poderiam – e deveriam – se dar.

Eis então o grande “privilégio” que essa obra-prima revela: deixar ser afetada ou afetado pela história de alguém que não procura um acerto de contas, ou mesmo um ponto final que explique ou dome seus disparos criativos. Mas que no exercício de ficcionalizar a própria vida, envolvendo traumas e afetos tão caros à memória privada de uma família, nos dá chance de encontrar caminhos por nós esquecidos nessa infinita busca por acolhimentos sem culpa. E faz isso com um exercício poético de criar distanciamentos estéticos que nos ajudam a chegar mais perto: o pai se colocando sempre como o F. Scott Fitzgerald do núcleo (o garoto da fazenda que era, na verdade, um príncipe) e a mãe como a projeção doméstica de um Henry James (“uma americana forte e idealista apanhada numa armadilha”). Faz isso também sem medo de abrir feridas que nunca serão cicatrizadas, mas que, quando expostas, criam um certo tipo de conciliação post mortem que, em lugar de apaziguar, nos deixa em suspenso no ar: as infinitas possibilidades de ser e amar num salto de trampolim.

Desde sua publicação original, em 2006, Fun home teve uma trajetória atípica para qualquer publicação em quadrinhos: além de ganhar o prêmio Eisner, o “Oscar” das HQs, ganhou, pelo menos, 10 diferentes traduções no mundo, incluindo a versão brasileira, e chegou aos palcos da Broadway como uma adaptação musical que levou nada menos que cinco prêmios Tony em 2015.

Apesar de ser tão elogiada pelas demais obras que assina, tanto no caso do livro sobre mãe, na peça e nas suas famosas tirinhas Dykes to watch out for, foi com Fun home que Bechdel escalou o mais alto degrau da combinação forma/conteúdo. A maneira como ela sutilmente se usa dos recursos gráficos dos quadrinhos para dar textura sensível a essas memórias é algo que vi sendo subestimado ao longo dos anos. Numa mirada rápida, parece que Bechdel trabalha em cima de um grau de controle bastante linear e clássico sobre a errância da memória na qual se fundaria o gênero literário dos diários. Mas isso que ela dispõe sobre as páginas como uma colagem convencional de fragmentos e, por vezes até didáticos e ilustrativos de algumas teses pré-formadas sobre seu pai e sobre ela mesma, trata-se, na verdade, de uma sofisticada arquitetura narrativa. À medida que se avança no álbum, essa narrativa tende a pôr os personagens em xeque. Bechdel não precisa de que confiemos em sua “versão da história”, porque ela mesma se abre às brechas das criações que fazemos quando construímos memória. Os recursos gráficos que menciono ampliam a complexidade com que essas pessoas são descritas e desenhadas.

Quando Bechdel, por exemplo, quer falar do caráter provinciano de seu pai, faz um círculo sobre o mapa da cidade e aponta exatamente onde, nesse mapa, ele nasceu, viveu, morreu e foi enterrado, toda uma vida encerrada dentro dos limites de uma cidade, ela mesma, provinciana: “um círculo solipsista de si mesmo, de autodidata a autocrata a autocida”. Um mapa desenhado sobre o papel já é, em si, o convite para uma viagem sem ponto de partida ou chegada, superfície que nega a linearidade das coisas.

Mas o trecho do livro em que a escolha visual cai sobre nossos ombros como uma pedra tão pesada quanto aquilo que se lê acontece justo quanto a autora faz duas páginas inteiras com um modelo superconvencional, num estilo europeu de disposição dos quadros, todos com o mesmo tamanho, somando quatro tiras de três colunas. O que está em cena é uma conversa que ela tem com seu pai pouco antes deste morrer, dentro do carro dele. É talvez o diálogo mais tenso e aberto entre os dois, quando finalmente a orientação sexual de ambos é dita em voz alta. E, no entanto, essa abertura é tão estreita, que o ar, sentimos, se torna rarefeito nas páginas muito bem-pensadas para que nelas também não houvesse brecha para a contemplação. Não há como abrirmos a janela desse carro: ficaremos durante essas duas páginas presas e presos numa conversa de poucas confissões e longo silêncios constrangedores, sem altos e baixos, sem grandes dramas ou rompantes, tudo tão trivial e monocórdico quanto uma tabela bem- desenhada de quatro tiras e três colunas.

Não há como não comparar essa decisão formal à própria índole do protagonista em questão. Leitor obcecado por James Joyce, o pai de Alison não era de rompantes, seu amor por tudo aquilo que era “afetado” se alimentava de outros gestos: “Creio que uma vida inteira escondendo a própria verdade erótica pode ter tido um efeito renunciante cumulativo. A vergonha sexual é em si um tipo de morte. Ulisses, é claro, foi banido durante anos por pessoas que achavam sua honestidade obscena”, escreve sua filha.

 

>> Carol Almeida é jornalista, doutoranda em Comunicação (UFPE) e crítica de cinema. Foi editora-assistente do Pernambuco