Tal qual Sísifo, os personagens dos 3 contos a compor Sebastopol (Alfaguara), de Emilio Fraia (foto), tentam levar o rochedo da vida até o alto da montanha, para depois vê-lo rolar precipício abaixo. Se vivências concretas não fazem sentido, a sobrevivência se ganha a partir de um processo de ficcionalização compulsório, do encontro com possíveis “duplos” e da evocação de fantasmas. Sebastopol é uma obra sobre a criação de artifícios. A sobrevivência como exercício atrelado à criação de artifícios.
Faz todo o sentido, assim, que a cidade russa que nomeia o livro apareça não como acidente geográfico propriamente dito, e, sim, como um fajuto cartão-postal – mas um cartão-postal daqueles que enviamos para nós mesmos, por falta de destinatário ou de viagens reais. O importante é recriar e assim ir seguindo.
No primeiro conto, uma garota reconta o acidente que sofreu ao tentar ser a esportista mais jovem a escalar o Everest – “porque escalar dá sentido à sua vida, e é disso que no fundo as pessoas precisam, Lena, eu sempre me digo isso, as pessoas precisam acreditar em alguma coisa”, lembra a narradora, Lena, de um conselho ouvido de uma amiga sobre o banal da sua motivação esportiva. O trauma da escalada, no entanto, é ressignificado quando ela assiste ao vídeo de uma artista gringa que parece contar a história da sua tragédia com a precisão do avesso do avesso típica dos espelhos, mas ainda assim sua história.
No segundo, o dono de uma pousada decadente no meio do nada procura um hóspede desaparecido, mas o procura sabidamente em vão pelo fundo de uma piscina cheia de lodo que já viveu dias melhores – lembremos que piscinas são o “cartão-postal” das águas, mais um lembrete da coleção de artifícios que o livro se propõe a compilar. No último dos contos, a frustração dos primeiros anos no mercado de trabalho leva uma garota a se aproximar de um diretor de teatro, que divide seu tempo entre espetáculos que jamais irão para frente e o tesão em stalkear desconhecidos pelas ruas, colando neles suas fantasias escapistas. Cada uma dessas ficções recebeu o nome de um mês do ano, começando pelo fim, Dezembro, passando pela metade, Maio, e encerrando por algo como um “lugar-nenhum”, Agosto – o mês que persistimos em acreditar como o dos maus presságios, talvez pela falta de uma definição melhor diante de sua localização “perdida” na divisão precária dos calendários.
Sebastopol é o primeiro livro solo de Fraia, que já havia feito O verão de Chibo (em parceria com Vanessa Barbara), e a graphic novel Campo em branco (com DW Ritbatski). Em sua nova estreia, mostra-se exímio na criação de uma atmosfera de mistério que toma as rédeas da atenção do leitor. O mistério do qual falamos não necessariamente implica resolução de algum caso ou de um grande segredo a ser revelado. Os mistérios aqui são os fios soltos e desconectados, que insistimos em amarrar diante de fatos que nada teriam de especiais por si só. É que precisamos criar uma mística qualquer, para lidar com o banal de corpos que se quebram, de memórias que acreditamos apenas como nossas de tão intensas e do súbito de pessoas que entram na nossa vida e, puf!, se vão.
>> Schneider Carpeggiani é doutor em Teoria Literária (UFPE), curador de eventos e editor do Pernambuco