Victor.Heringer nov.18

 

 

Nos estudos espaciais, está posta, com frequência, a relação entre a temática e os processos de linguagem e do discurso – alguns exemplos de teóricos que reverberam tais noções: Michel de Certeau, Gaston Bachelard, Henri Lefebvre; correspondência que torna a paisagem um resultado de sistemas de organização representativa. Nesse contexto, para Lefebvre, existem algumas aplicações da atividade no espaço que são consonantes ao alegórico, entra elas, a ideia de espaços de representação.

De acordo com o filósofo francês, essa dimensão de produção espacial tem cunho simbólico. São espaços que fazem menção a outra esfera de signos e conectam-se a algum tipo de matéria. Tornam-se, assim, plataformas transmissoras de significado, como os elementos que formam uma cidade, por exemplo. Narrar o espaço faz parte de uma construção que se dá não por meio da linguagem, mas em progressões junto a ela. E é nessa espécie de parceria entre espaço e discurso que se encontram alguns pontos de tensões.

A partir da chave dos espaços de representação, Glória, primeiro romance do escritor carioca Victor Heringer (1988-2018), é como um exercício contínuo do que se pode tencionar entre espaço e linguagem. Lançando em 2012, pela 7Letras e, agora, em nova edição pela Companhia das Letras, o livro tem como foco a vida da família Costa Oliveira, com destaque para os irmãos Abel, Daniel e Benjamin. Entre o Rio de Janeiro e o município de Santa Maria Madalena, a relação familiar é atravessada pelo humor, pelo desgosto e pela morte.

Glória aparece como o início de um projeto literário que passou a encontrar certa estabilidade em O amor dos homens avulsos (2016), segundo e último romance de Heringer. Em ambos, a problemática espacial é pensada minuciosamente, desde elementos alusivos como o mapa no quarto dos pais dos três irmãos em Glória, até a descrição das lembranças da casa de Camilo, no Queím, em O amor dos homens avulsos. Mas, em Glória, é possível observar um esforço maior no trabalho de inventividade daquele universo e, ato contínuo, a vontade de Heringer em dar elasticidade ao humor pela via do absurdo.

Dessa maneira, os espaços de representação aparecem no livro, a princípio, mediados pela construção dos vínculos entre os personagens. O signo do outro, portanto, não se configura exatamente como matéria, mas funciona para ancorar os deslocamentos e permanências ao longo da narrativa. O apartamento na Glória; a casa de d. Noemi, matriarca da família; o museu onde Benjamin trabalha, o sítio de d. Letícia em Santa Maria Madalena são algumas chaves de leitura espacial que passam pela personificação.

Os núcleos familiares como extensões de bairros cariocas – fictícios ou concretos – foi amplamente desenvolvido nos dois romances. Os narradores de Heringer parecem compreender que a representação do espaço e o ato da narrativa só são possíveis se existir alguns elos entre vida e morte, amor e ódio, ironia e desgosto. Na catalogação e no desenvolvimento de percursos dos membros da família Costa Oliveira, existe a marca daqueles que entendem: a atividade no espaço se dá por meio de inquietudes que alcançam alguma imagem através da palavra. “O amor dá problema de memória”, afirma Benjamin e, justamente por essas incongruências, o espaço surge como um fator de delimitação que ajuda a suportar todos esses elos e suas falhas.

Como já dito, Glória é um romance que se fez atento ao processo criativo e no qual Heringer buscou certo tipo de experimentalismo. São latentes as referências a Machado de Assis, Jorge Luis Borges e outros nomes consagrados para o campo da literatura e da filosofia, mas o texto flui menos polido e mais ferino do que no O amor dos homens avulsos. Para além dos espaços “reais” representados, como o Bairro da Glória, destaca-se o Café Aleph, o fórum virtual onde anônimos adotam nomes da cultura antiga e contemporânea para dissertar sobre artes e assuntos corriqueiros. Um tipo de baile de máscaras de pretensos intelectuais online.

Escreve o narrador: “A vantagem dos edifícios virtuais é a sua maleabilidade. Os tijolos são todos feitos de números 0 a 1 sequenciados, e a única energia necessária para erguer uma parede, uma laje, uma igreja ou a torre de Babel é a dos dedos. O fato de resultarem invisíveis a olho nu, não parece incomodar seus moradores e visitantes, até porque, se duas ou mais pessoas acreditam que eles estão ali, de pé, não há vivalma que as convença do contrário”. Nas descrições do Café Aleph, encontra-se um exemplo final do quanto Glória projeta linguagem e espaço nas contradições dos sujeitos e faz dos espaços de representação também paródia e pastiche. “Se duas ou mais pessoas acreditam que eles estão ali, de pé, não há vivalma que as convença do contrário” – essa afirmação deixa explícito que o espaço pode existir mesmo quando a paisagem é delirante tanto quanto as infâmias que rondam estes nossos tempos, como bem soube nos alertar Victor Heringer em suas narrativas e poemas.

 

>> Priscilla Campos é jornalista e mestra em Teoria Literária (UFPE)