Boricua é um derivado da palavra taino boriken (taino é uma das línguas autóctones do Caribe) que a comunidade porto-riquenha, principalmente a que vive nos EUA, usa para nomear si própria, de maneira positiva. A primeira vez que a ouvi foi em 2003, na música Infatuation, de Christina Aguilera: “‘eu sou 100% boricua’, diz a tatuagem no braço dele”. A segunda vez que me deparei com a palavra foi 14 anos depois, no poema brigo com minha namorada porque os fascistas querem me matar, de Raquel Salas Rivera:
brigo com minha namorada porque ela se esquece do nome
da minha amiga boricua
e porque estou cansada.
me automedico com poemas
Se no texto de Salas Rivera o significante identitário vem para sublinhar uma tensão política entre a invisibilidade de pessoas latinas nos EUA e a invisibilidade queer, na música de Aguilera, a palavra dá materialidade a esse corpo, mas por meio de estereótipos relacionados à latinidade. Na música, a cantora descreve seu novo paquerinha como “um bailarino” (porque, óbvio, não dá pra ele ser latino e trabalhar como, sei lá, fotógrafo, padeiro, professor, astronauta), “que vem de um país estrangeiro, uma ilha muito distante” (sendo que Porto Rico está mais perto dos EUA – 1.600 km – do que o Recife está de São Paulo, distantes 2.700 km uma da outra!). Aguilera, ela mesma filha de um imigrante equatoriano, salpica por todo texto invenções atribuídas à latinidade, descrevendo seu objeto de desejo, um dançarino porto-riquenho, como um cara sexy, que domina a arte de seduzir, mas principalmente a de enganar (“mamãe me avisa: filha, cuidado com esses latin lovers / entreguei a um meu coração e foi assim que me tornei sua mãe”). O problema da proliferação desse estereótipo específico – a dominação da arte de enganar – é que ele não somente não faz jus às comunidades boricua e latina (algum estereótipo faz?), como também é o que ajuda a matar e encarcerar esses grupos nos EUA, onde 32% da comunidade carcerária é latina, apesar dos latinos representarem apenas 16% da população total do país.
É aí que eu queria chegar: a latinidade é reduzida a dois tipos, marcados por significantes de classe, ultrassexualizados e heterocêntricos (o latin lover pobre e enrolão, e a milionária sexy tipo Jennifer Lopez – que amamos, mas às vezes é foda!). A poeta, ensaísta e ativista chicana Cherríe Moraga fala disso, de “uma pequena elite latina que frequentemente usa sua identidade racial/cultural não como fonte de empoderamento político, mas para vantagem pessoal, posicionando-se como fantoches, numa indústria dominada por brancos”. Assim, é urgente a proliferação de vozes como a de Salas Rivera, que tenta reinventar não somente o mito da latinidade, mas que também fala, usando poesia, das relações de classe e de gênero que mantêm esse mito.
Salas Rivera é uma poeta latina e boricua, imigrante não binária vivendo nos EUA, que usa poesia para empoderamento político, seu e nosso – e um montão de prazer estético. E é por isso, portanto, que é de se celebrar – e muito – a publicação da autora em português, pela Douda Correria, com o lançamento do livro Desdomínios.
A publicação reúne poemas de quatro obras anteriores, que aparecem na ordem cronológica – o que dá, para essa pessoa com Mercúrio em Virgem que vos escreve, um prazer especial: poder acompanhar o fortalecimento do vocabulário e do imaginário de uma poeta, de maneira tão clara, é mesmo uma delícia. Por causa dessa simplicidade despretensiosa, página após página a poesia de Salas Rivera se agiganta. Além disso, a autora não parece ter medo de ser panfletária – apesar de que você nem nota que está sendo introduzida no vocabulário político da autora, que é bastante particular; questões de gênero, imigração, Porto Rico, sexualidade: está tudo lá.
O motivo, talvez, para que a gente nem perceba essa politização, é por causa do prazer que emana em cada texto (e por favor não confundam prazer com simplismo – não é fácil gozar). Esse prazer se faz sentir nos neologismos, na iconoclastia, nas imagens exageradas do amor romântico, no humor levemente autodepreciativo; elementos que aparecem no texto de Salas Rivera com bastante naturalidade, até que vem um ataque surpresa, pela via às vezes da porrada, às vezes da delicadeza. Num poema chamado Que bom! (MEU DEUS QUE TÍTULO), a autora analisa relações laborais e/ou figuras de autoridade e termina da forma mais
inesperada possível:
soltei meu chefe no rio afoguei meu chefe
tu conheces a história
meu chefe diz obrigado raquel pelos teus bons desejos
eu, tranqui,
que por pouco fui chefe mata-chefe
mas agora antes de nascer
sonharam-sonharam-me assim
preciosa
Esse poema tem um pouco de tudo isso – política, prazer, personalismo, descaso, sarcasmo, gentileza, cansaço. Mas é no estupendo Meu amor, que aparece o verso mais importante de Desdomínios, justamente pelo uso que faz destes contrários; a poeta detecta o buraco negro e faz dele seu lugar:
28. amar-me-ás inteira, invisível, boricua?
O uso, na obra, desse jogo de morde e assopra, de um jeito que fica entre o pop e o barroco, é bastante interessante se pensarmos que esta é a linguagem mesma do neoliberalismo, que nem nos deixa nem nos proíbe ser quem somos – separando vozes e os corpos dissidentes, dividindo o mundo entre vencedores e perdedores. Em Desdomínios, Raquel Salas Rivera nem emula, nem nega o potencial para drama que nos foi atribuído – ela torce tudo o sabemos sobre isso, e faz do exagero um lugar de reivindicação política e poética.
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> Adelaide Ivánova é poeta, tradutora e fotógrafa. É autora de O martelo