Silvina Ocampo reproducao

 

Escondida nos galhos de um cedro do quintal enquanto a família dorme a sesta, encafurnada nas dependências dos empregados, oculta detrás de um par de óculos de gatinho, frequentemente tampando o rosto com as mãos nas fotografias. Difícil desvendar um personagem tão esfíngico e brumoso como a escritora argentina Silvina Ocampo, desafio que sua conterrânea Mariana Enríquez – do livro de contos As coisas que perdemos no fogo (Intrínseca, 2017) – encarou em La hermana menor: un retrato de Silvina Ocampo. Publicado em 2014 pela editora da universidade chilena Diego Portales, o livro acaba de ser reeditado pela Anagrama e é a primeira obra biográfica sobre esta que é considerada pela crítica e a academia a maior contista argentina de todos os tempos, a despeito de seu quase total desconhecimento no Brasil.

“Vejo uma pessoa disfarçada de si mesma”, escrevera Victoria Ocampo na revista Sur em 1937, resenhando o livro de estreia de sua irmã, Viaje olvidado. “Sempre brinquei de ser o que não sou”, diz a autora em seu último livro, Cornelia frente al espejo. Silvina era um palimpsesto de máscaras. Diante da inviabilidade de obter um único rosto verdadeiro, Mariana – que além de escritora é jornalista e subeditora do jornal Página/12 – recorre a uma multiplicidade de fontes, testemunhos escritos e de pessoas vivas para escrever este perfil, que ela prefere chamar de retrato. “Uma biografia tem certa pretensão de história definitiva, e é impossível conhecer alguém completamente, menos ainda Silvina, que tinha a intenção manifesta de permanecer misteriosa. Eu queria oferecer justamente um retrato da autora, vozes contraditórias, uma aproximação poliédrica. Com certeza me escaparam muitas questões, mas acho que isso é parte de sua personalidade: era elusiva. Fazer um perfil elusivo parece-me uma maneira de ser fiel a ela”, explica.


A ETCETERA DA FAMÍLIA 

Sexta filha de Ramona Aguirre e Manuel Ocampo, aristocrática família portenha, Silvina Inocencia Ocampo nasceu e morreu em Buenos Aires (1903-1993). Sendo a caçula – “la hermana menor” do título –, cresceu sentindo-se a “etcetera da família”, como costumava dizer, mas também com maior liberdade que sua irmã mais velha Victoria (1890-1979). E aqui entra uma das três figuras que, indiretamente, acabaram por ensombrar Silvina. Victoria Ocampo foi, junto com Eva Perón, uma das mulheres-chave da cultura e sociedade argentina do século XX, diretora do Teatro Colón, fundadora das lendárias revista e editora Sur e a única de seu país a assistir ao Julgamento de Nuremberg. Victoria era popular, midiática, política. Silvina era tímida, antissocial, reclusa, tinha fobia de sua imagem e preferia circular em rodas íntimas. Na infância, é educada em casa, por preceptoras inglesas. Aos 26 anos, viaja a Paris, onde aluga um studio na rive gauche e se torna aluna de Giorgio De Chirico, precursor do Surrealismo, e de Fernand Léger, mestre do Cubismo. Conta seu grupinho de amigos – entre eles Xul Solar e Antonio Berni – que era comum ela desaparecer por dias pelas ruas parisienses sem dar notícias. Segundo o pintor Horacio Butler, Silvina tinha “aquele encanto misterioso, quase reticente, das mulheres debruçadas sobre si próprias, ensimesmadas na descoberta de sua própria natureza”.

Em 1940, casa-se com Adolfo Bioy Casares, 11 anos mais jovem e com quem já vivia há cinco. Eis a segunda figura que a ofuscaria. A terceira seria Jorge Luis Borges, amigo de uma vida toda e que, por sua vez, também acabaria ofuscando Bioy. Apesar de sua patente misoginia – dizia que “nem Virginia Woolf se salvava” –, Borges admirava Silvina como escritora e dedicou a ela um de seus textos fundamentais, Pierre Menard, autor do Quixote.

Estar no centro da intelectualidade argentina e, ao mesmo tempo, ocupar o espaço periférico que sempre ocupou é um dos contrassensos que marcaram a trajetória de Silvina. Para Mariana Enríquez, porém, esta posição talvez tenha sido mais complexa. “Quem a admirava decreta que foi ela quem escolheu este segundo plano. Seus contos são profundamente estranhos, contemporâneos, difíceis de se rotular – alguns experimentam com gênero, como aquele em que o narrador é um trapo que se transforma em ‘trapa’. Acho que o lugar secreto em que ela ficou, e onde certamente estava confortável, permitiu a ela essa liberdade de escrever contos radicais”. No livro de Mariana há diversos depoimentos que corroboram essa espécie de opacidade voluntária de Silvina, seja por pudor, seja pela astúcia de preservar a liberdade de sua vida íntima e criativa.


“ADOLFITO, POR FAVOR, MENOS"

La hermana menor também escrutina certos rumores em torno de Silvina. Um deles, francamente escandaloso, é sobre Silvina ter sido amante de Marta Casares, de quem fora amiga antes de ser nora. “Você precisa conhecer a mais inteligente dos Ocampo”, teria dito ao apresentá-la ao filho Bioy. O boato é ventilado em Historia secreta de los homosexuales en Buenos Aires, ensaio do sociólogo Juan José Sebreli. A lesbianidade de Silvina também é conjecturada por sua amizade com Alejandra Pizarnik, a quem dedicou seu livro Ejércitos de la oscuridad. Em 31 de janeiro de 1972, meses antes de suicidar-se, Pizarnik lhe escreve em carta: “Queria que estivesses nua, ao meu lado, lendo seus poemas em viva voz. (...) Te beijo como sei e à maneira russa (com variações francesas e da Córsega). (...) Silvina, cure-me, não faça com que eu tenha de morrer já”. As fontes entrevistadas por Mariana dão versões desencontradas sobre o romance: para a maioria, Alejandra nutria pela amiga um insistente amor romântico não correspondido, mas para o poeta Fernando Noy, que naquele tempo era um grude com Alejandra, a aventura não só foi real como Pizarnik teria se matado por amor. Impossível comprová-lo.

Outro rumor: em viagem com Bioy em 1949, Silvina levara sua sobrinha Genca, com quem teriam vivido um trio amoroso. Genca – que fora amante de Bioy por décadas – era a sobrinha preferida de Victoria, que teria achado aquilo um desaforo e rompido com a irmã. O caso é ficcionalizado no romance Testimonio sobre Mariana, de Elena Garro, esposa de Octavio Paz e outra das numerosas amantes de Bioy. Elena, aliás, protagoniza uma anedota contada por Mariana: antes de viajar à França, a mexicana despachou seus quatro gatos num voo a Buenos Aires para que Bioy os cuidasse. Silvina, que amava cães mas detestava gatos, mandou todos a um lar de animais, para desespero de Elena.

Há muitas passagens sobre a intimidade do casal. Certa vez, ao entrar no quarto de Bioy, Silvina o flagra aos beijos com uma mulher e diz apenas: “Adolfito, por favor, menos”. Embora tivessem um casamento aberto – a única filha do casal, por exemplo, foi gerada por uma amante –, ele sempre explicitou seus casos, enquanto ela era discreta. Ao contrário de Adolfo, Silvina nunca manteve um diário, o que torna ainda mais difícil penetrar em seu mundo singular. “Sou como os animais, escondo o que mais gosto”, dizia. Mariana Enríquez confronta versões, como a de Jovita Iglesias, governanta da família por meio século e autora do livro Los Bioy, que via a infidelidade de Casares como algo perverso, e a de Ernesto Montequin, responsável pelo arquivo de Silvina, para quem é injusto considerá-la vítima. “Ela teve uma vida amorosa bastante plena, eles tinham uma relação muito complexa e Silvina a transformou em literatura. A relação com Bioy podia fazê-la sofrer mas também a inspirava”.

Silvina era excêntrica. Apesar de sua condição aristocrática, era austera, comia mal e usava alpargatas vermelhas furadas no dedão, remendadas com band-aid. O apartamento onde viveu com Bioy na Rua Posadas, com seus 22 cômodos e 900 metros quadrados na Recoleta, tinha manchas de umidade, móveis lascados, baratas pelas paredes, quartos fechados. Às visitas que pediam para adoçar o café, Silvina dizia que as formigas haviam comido todo o açúcar. Vivia em outro mundo. E só uma coisa, além de Bioy, realmente lhe importava: escrever.


ENFANT TERRIBLE

Em La hermana menor, Mariana Enríquez analisa a produção literária de Silvina Ocampo, do primeiro livro, Viaje olvidado (1937) ao último, Cornelia frente al espejo (1988). Abundam contos sobre infanticídios, incestos, violações. A casa aparece como refúgio e como o mais perigoso dos territórios, há situações realistas que enveredam para o grotesco fantástico, enfants terribles que escandalizam pela crueldade de suas travessuras – como a própria Silvina criança, que se escondia debaixo da mesa de passar roupa e agarrava os pés da empregada cega, deixando-a atordoada.

“Seus contos são puro risco, totalmente loucos. Li quando era menina e não entendi muito, mas me inquietaram profundamente. Li de novo, já adulta, e me assombraram seu humor obscuro, como se divertia com suas perversidades”, conta Enríquez. Para ela, Silvina é a maior de todos os grandes contistas argentinos, “ninguém chegou mais longe”. Por outro lado, avalia, sua poesia é tão diferente dos contos que parece ditada por outra personalidade, “proveniente de uma mulher que é mais ordenada, menos despenteada, estranha porém correta”, diz.

Autobiografía de Irene distancia-se formalmente de seu livro de estreia, mais livre e insano, e embora carregue algumas de suas obsessões – o tema do duplo, a crueldade, a premonição –, traz contos acabados e cerebrais, fortemente influenciado pelo modelo narrativo borgeano. Em 1959 sai La furia, “mais ocampiano de seus livros de contos”, na opinião de Mariana Enríquez. A coleção inclui histórias emblemáticas, como La casa de azúcar, o preferido de Cortázar, sobre a influência sinistra que a antiga dona de uma casa exerce, metafisicamente, na nova inquilina; Mimoso, sobre o ciúme do marido quando a esposa decide embalsamar seu adorado cão morto, conto que Borges detestava; La boda, em que uma criança envenena a vizinha colocando uma aranha em seu coque no dia de seu casamento; Las fotografías, que descreve, numa chave kitsch e cruel, uma sessão de fotos na festa de aniversário de uma adolescente paralítica; e Voz en el teléfono, em que um menino pirômano castiga sua mãe enquanto ela fofoca sobre lingerie com as amigas na sala de estar.

Silvina, Borges e Bioy jantaram juntos quase todas as noites de suas vidas, discutiram literatura com paixão, leram-se e influenciaram-se mutuamente, mas, ao contrário deles, ela tinha melhor ouvido e soube como poucos emular a fala coloquial rio-platense, gerando um efeito de oralidade que contrastava com a estranheza sintática de suas “frases com torcicolo”, como apontou Victoria Ocampo. “Onde se metia essa mulher, com quem falava para dominar com tanta ironia e precisão os lugares comuns, a conversa irreflexiva, a fala de uma classe social que não era sua e com a qual pouco convivia na vida cotidiana?”, pergunta-se Enríquez. Na definição de J. R. Wilcock, com quem Silvina escreveu a peça Los traidores em 1956, “Borges representava o gênio total, ocioso e preguiçoso; Bioy, a inteligência ativa; Silvina era entre eles a sibila, a maga que lhes recordava, em cada movimento e em cada palavra, a singularidade e o mistério do mundo”.

O interesse da crítica e do público veio tarde, após sua morte, com a reedição de seus livros pela editora Emecé. Para além do machismo da época que suplantou tantos projetos literários de escritoras, Noemí Ulla, autora de Encuentros con Silvina Ocampo, atribui seu ofuscamento a certo preconceito ideológico, pois até meados da década de 1980 na faculdade de letras só se lia ou estudava ‘literatura comprometida, em termos sartrianos’. “Nem Silvina nem Borges eram lidos. Era preciso ser muito corajoso para ler autores da ‘oligarquia’ e antiperonistas, sendo a estudante progressista que eu era”, lembra.

No Brasil, o nome de Silvina Ocampo é conhecido quase que unicamente pela Antologia da literatura fantástica, que organizou com Borges e Bioy (Cosac Naify, 2013). No ano que vem, por fim, La furia deverá ser editado pela Companhia das Letras. Já era hora dessa endemoniada irmã caçula deixar de se esconder de nós.

 

> Mariana Sanchez é jornalista e tradutora