Secchin jan17 resenha 1

 

O caminho é individual, mas o ganho é coletivo em Percursos da poesia brasileira, obra de ensaios recém-lançada pelo poeta e crítico literário Antonio Carlos Secchin, integrante da Academia Brasileira de Letras. Reúne textos produzidos entre 1996 e 2014, com alguns inéditos. As escolhas do livro são anunciadas como “pessoais”, já que se detêm, várias vezes, em autores ou nuances que passam distante das discussões mais frequentes do campo literário. Porém, é na afinidade eletiva com certo período ou produção que Secchin marca pé de seu olhar sobre o objeto literário e, na construção desse olhar, possibilita reflexões. Explico-me com base em momentos do livro.

O que primeiro salta aos olhos nestes Percursos é a valorização de autores e produções do Romantismo e do Modernismo. Nisto, são particularmente interessantes os ensaios sobre as aparições de Portugal e dos motivos marinhos na poesia romântica. A marcação da ambiguidade que existe na rejeição social do país luso e a preocupação com a manutenção do português castiço na produção citada nos ajudam a entender os processos de produção da nossa nação, essa comunidade imaginada, porque operam, como mostra o antropólogo Benedict Anderson em Comunidades imaginadas, em cima da materialidade da linguagem. Lembremos que os usos do português estão na pauta desde o decreto de 1758, emitido pelo Marquês de Pombal para instaurar, não de forma pacífica, o idioma europeu como único.

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Do uso criativo e incontornável da sintaxe lusa em Gonçalves Dias às primeiras incursões nas coloquialidades feitas por Álvares de Azevedo, passando pela necessária discussão da forma no Parnasianismo e a desembocar, posteriormente, na língua modernista e já brasileira em Raul Bopp ou, posteriomente, Cabral, as veredas de Secchin proclamam uma discussão sobre as principais mutações da língua na nossa poesia.

Não é de graça, portanto, que a obra começa com Tomás Antonio Gonzaga e uma discussão sobre a ambiguidade de sua lírica romântica (da relação entre o homem e seu objeto de desejo, a mulher): o poeta viveu no período pombalino e o temário romântico se desdobraria em inúmeros momentos de nossa literatura posterior. Também o motivo marinho nos auxilia a entender a ideia de nação por meio de nossa literatura: a busca pela nossa identidade é vista na valorização dos motivos naturais tão comuns na poesia do primeiro momento do Romantismo. Exclui-se o mar, na visão de Secchin, porque ele é símbolo não da tropicalidade ou da pujança do meio ambiente, mas por ser o espaço de tráfego da vergonha da escravidão, um mar de chegada, e não de ida. Não é o mar de Camões, aberto ao mundo e prenhe de imaginação, que se constitui como elemento central no imaginário lusitano; mas o de sua volta, sobre a qual Os Lusíadas se debruça rapidamente e que, no Brasil, foi caminho de tantas opressões.

O olhar sobre a linguagem nos leva a outro entendimento, o segundo, sobre os Percursos de Secchin: a defesa do repertório da palavra poética em nossa literatura. Já na primeira página, o autor rejeita as justificações que visam alçar ao literário apenas uma produção socialmente engajada, sem perder de vista a esterilidade de formalismos e estruturalismos tomados apenas por si. Mais vale que o objeto diga qual o melhor método de estudo e o de Secchin prima pela união de ambos. É o que fica visível no olhar sobre a poesia marginal, completamente satélite na obra, mas que se insinua quando o ensaísta se detém em Cabral (o “assassinado” por excelência daquele período, ainda que de forma ignorante) e no panorama que traça das poéticas contemporâneas. Ao rejeitar a ideia da “ditadura do novo”, que abre espaço para a lógica do Poemão cunhada por Cacaso e que visa tratar como literárias todas as novas formas de poesia surgidas nos sufocantes anos 1970, ele exalta o trabalho pensado da língua em Cabral. Mas não perde de vista a presença de qualidade na referida produção: ressalta a importância de Ana Cristina Cesar, Chacal e Cacaso por seu trabalho com a linguagem. Se pode incomodar a escassez de ensaios mais profundos sobre a produção contemporânea e o tom que é, em alguns casos, esquemático, tal característica pode ser entendida pela ausência nesta produção de uma contribuição própria ao repertório da língua.

O tributo à língua é reforçado ao se falar de Cabral e Drummond. Mas é pela presença de uma coetânea destes que se revela a ideia dos Percursos: Cecília Meireles. Não há análise do conhecido motivo marinho em sua poesia, mas das viagens à Índia; não fala do que a poesia de Cecília alcança, mas do que dela escapa à sombra. Ora, Cecília não nos lega um trabalho de linguagem que tenha marcado lugar no cânone. Mas pontua a arte como naufrágio, como algo exilado das categorias de conforto e proteção. Esse exílio não é o mesmo que marca, também, o ofício crítico, que deve se pautar pela necessidade de busca constante e de desconforto para com o ímpeto domesticante?

Concorde-se ou não com Antonio Carlos Secchin, correr com ele estes seus individuais Percursos é, para os leitores, interessante exercício de reflexão sobre as dinâmicas da palavra poética de hoje, o que se constitui como ganho por nos levar a refletir detidamente no presente tão disputado por inúmeras e importantes dicções.

 

* Igor Gomes, jornalista, é editor-assistente do Pernambuco