Pascal.Quignard resenha ago.18

 

Na última proposição de seu Tratado Lógico Filosófico, Ludwig Wittgenstein afirma: “Acerca daquilo que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio”. Para Wittgenstein, na primeira parte de seus estudos, presentes no Tratado, a linguagem está ligada às figurações do mundo e, dessa maneira, junto ao pensamento, faz parte de nossas vidas íntimas. Assim, o silêncio aparece como um tipo de restaurador da linguagem: depois que passamos dele, podemos, então, restabelecer a língua. Existe um tipo de respeito e alerta ao que falta, na linguagem, em toda sua obra. A palavra que não engasga, o silêncio que acaba por denunciá-la. Essa relação entre o silêncio e a linguagem aparece como uma das chaves de leitura na obra do francês Pascal Quignard, em especial, o nome na ponta da língua, lançado, recentemente, pela editora Chão da Feira.

Quignard, autor de ensaios, romances e poesias, estudou Filosofia na Universidade de Nanterre. Ao longo do livro, dividido em duas partes – o nome na ponta da língua e o enigma seguido de comentário sobre três versos de Donne – percebe-se, como temática, aproximações entre literatura, questões filosóficas e psicanalíticas. O escritor busca limiares não só em termos de desenvolvimento dos temas, mas também no resultado de seus escritos, na estrutura e no trabalho com a linguagem. Desse modo, o próprio texto de o nome na ponta da língua é mantido por meio de lacunas, espaços cuja identificação é movediça, fincado entre gêneros – como o ensaio, o conto e o fragmento – e um tipo de narrativa poética-filosófica, como no trecho: “A mão que escreve é antes uma mão que vasculha a linguagem que falta, que tateia em direção à linguagem sobrevivente, que se crispa, que se exaspera e que a ponta dos dedos por ela mendiga.”

No início, Quignard anuncia a escrita de um conto, com título homônimo ao livro, que remonta às narrativas lendárias: a bordadeira Coulbourne apaixona- -se pelo jovem alfaiate Jeûne e, para casar-se com ele, faz um pacto com o Senhor Heidebic de Hel. Em troca de uma preciosa cinta, utilizada como objeto de conquista do amor de Jeûne, ela precisa lembrar, em um ano, o nome do Senhor. Caso não consiga, será levada para o seu castelo e separada, para sempre, do homem que ama. Coulbourne esquece do nome, e sua vida vira uma eterna busca dolorosa pela palavra. Quando definha nesse esquecimento, a personagem teme, em certo grau, pela morte: tanto do amor quanto sua, como sujeito desejante. O erro da linguagem, nesse aspecto, pode levar ao fim fatal que se catalisa pelo defeito da memória.

Escreve o francês: “Resumi um conto em que a falha da linguagem estava na origem da ação. Esse tema parecia-me, mais do que qualquer outra lenda, destinado à música. Os músicos, como as crianças, como os escritores, são habitantes dessa falha. As crianças, durante pelo menos sete anos, habitam essa falha, que a própria palavra infância indica. Os músicos procuram libertar-se dela pelo canto. Os escritores aí se fixam para sempre no espanto.” Assim, no silêncio está o lugar do temor e, ao mesmo tempo, o lugar que empurra ou fixa o sujeito no espaço. Para Quignard, a escrita é o lugar onde foi possível estabelecer a quebra dessa mudez, ultrapassar o silêncio – como afirmou Wittgenstein – e permanecer no espanto.

Após o conto, vem o subtópico pequeno tratado de medusa, uma espécie de diário autobiográfico, narrativa de acontecimentos ligados à infância do escritor, no qual ele fala, em primeira pessoa, por exemplo, dos períodos em que esteve calado durante a sua vida: “Perdi duas vezes a linguagem. Aos dezoito meses me calei. Comia no escuro, sobre uma mesa azul de treliça, de que me lembro melhor do que de mim mesmo. Ela se dobrava. Era a minha mesa de silêncio”. E, mais à frente: “Fui novamente obrigado a me calar aos dezesseis anos. Calo o porquê. Esse conto que chamo o nome na ponta da língua é o meu segredo”. Dessa forma, Quignard expõe na escrita o seu sintoma, transformando-o, enfim, em sinthoma – como definiu Jacques Lacan, em seus escritos sobre James Joyce, no Seminário, livro 23. O sintoma, para a psicanálise, é o mais íntimo gozo do sujeito, algo bastante precioso e, ao mesmo tempo, com alta carga de sofrimento. No momento em que o sintoma é, de alguma maneira, elaborado e arramado, como acontece na escrita, ele se transforma em sinthoma.

A temática da linguagem e do silêncio está justaposta à psicanálise nos textos de o nome na ponta da língua. O autor faz referência direta a Sigmund Freud quando afirma que “toda fala é sempre incompleta”, uma premissa da falta que explode no não-dito. Entre a proximidade com pensamentos de Wittgenstein e os comentários psicanalíticos, a escrita de Quignard lembra as propostas feitas por Héctor Libertella (1945 – 2006), escritor argentino que se manteve, como o francês, nos limiares da tríade literatura, filosofia e psicanálise. Libertella procurou explorar, em sua obra, a estrutura do fragmento, um tipo de texto no qual certa característica errante faz com que essas reflexões interdisciplinares, livres de um jogo argumentativo contínuo (como acontece no ensaio, por exemplo), sejam organizadas.

Na última parte do livro, nos comentários sobre os versos de Donne – Quando um homem morre um capítulo/ não é arrancado do livro mas/ traduzido numa linguagem “outra” – Quignard adota uma espécie de texto fragmentário, já vista em outras etapas do livro, e intitula os trechos de “Metamorfose”. Assim, o nome na ponta da língua termina com enxertos sobre nascimento, maternidade, língua, morte e a afirmação da arte – sonho, pensamento, meditação, literatura – como mensagens enigmáticas que nos tocam e nos direcionam a cruzar, destemidos, o silêncio.

 

* Priscilla Campos é jornalista e mestra em Teoria Literária (UFPE)