“Desde que morreu, [minha mãe] tem sido dissecada, analisada, reinterpretada, reinventada, ficcionalizada e, em alguns casos, completamente fabricada”, escreveu Frieda Hughes, filha de Sylvia Plath, no prefácio de Ariel – edição restaurada e bilíngue com os manuscritos originais, relançado agora no Brasil pela Verus Editora, em tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo.
O que Frieda Hughes diz não é mentira. O suicídio de Plath (em 1963), mais do que sua obra, colocou-a no repertório dos debates feministas. O fato de ter sido Ariel o manuscrito que estava sobre a mesa quando de sua morte ajuda a criar um misticismo com ares de recado, tipo vejam o que fizeram comigo. Não acho que seja à toa, portanto, que a biografia dela cause mais fascínio do que seus livros que, no Brasil, são pouco publicados (o mesmo acontece com Anne Sexton, outra poeta confessional estadounidense, que se suicidou em 1974). Mas e a poesia dela, onde fica?
Minha relação com o texto de Plath é essa: li no fim da adolescência porque todo mundo dizia “tem que ler!”, e achava que precisava gostar, porque todo mundo dizia “tem que gostar!”. Em 2001, Plath preencheu um lugar importante no meu repertório e lá ficou (no meu livro O martelo ela está em dois poemas) menos pela identificação com sua escrita, e mais pela quase completa ausência de mulheres no cânone poético, que eu pudesse ler. Ainda que me atraíssem o blues suicida e as passações de recibo pra Ted Hughes, seu marido abusador, as imagens que ela cria pareciam piegas (como pode alguém ter a audácia de escrever um verso tão ruim como Pura e limpa como um choro de bebê?). Não conseguia ver, ainda que entendesse o furor que isso causou nos anos 1960, onde estava a potência. Ok, os temas eram polêmicos (tem um poema que se chama Talidomida, que foda!), mas o método era antiquado: traçar paralelismos entre as imagens do mundo exterior (bucólicas) e as do mundo interior (infernais). Eu, fruto do amoníaco e de não sei que, brincadeira, eu, fruto do grunge dos anos 1990 e informada pelo feminismo socialista dos anos 1970 (tudo pós-Plath, eu sei), tinha dificuldade em aceitar, enquanto protofeminista de 19 anos, por que o mero fato de falar sobre “coisas de mulher” faria do texto algo automaticamente feminista. Eu precisava de mais que isso. E imaginava, como ainda imagino, o que o boom do feminismo nos anos 1970, a criação de um início de genealogia de autoras mulheres e a ideia de sororidade teriam feito com Plath e sua escrita.
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Ainda hoje não aceito o argumento de que Plath escrevia sobre coisas “novas” (dar de mamar, aborto, os pratos para lavar, o marido escroto). “Novas” para quem? Só se for pros boys que a alçaram ao cânone, porque né, escrevemos sobre isso há um tempão. Não foi Plath nem quem abordou a temática pela primeira vez – alô, Gwendolyn Brooks! – nem que revolucionou esteticamente a abordagem. Com sua linguagem solene, Plath escrevia como (e para, ouso dizer) os boys do cânone, que vieram antes dela e informavam seu referencial: Dylan Thomas, Yeats, Auden e Blake. Ah, e Shakespeare, claro.
Mas falta de mulheres no cânone poético que possam informar outras poetas mulheres não é culpa, nem um problema criado por Plath: é um problema nosso. A teórica australiana e ativista Lynne Segal, no seu livro Making trouble: Life and politics, diz: “[até fim dos anos 1960,] seja na política ou na cultura, ainda éramos forçadas a nos identificar com os boys. Não havia mulheres referência [...] Eu lia D. H. Lawrence, Jack Kerouac, Norman Mailer, J. D. Salinger [etc.] e me incomodava, ainda que eu não conseguisse articular isso, o fato de que em todos eles havia uma clara hostilidade contra as mulheres. Onde estavam as mulheres [da literatura]?”. No livro, Segal fala da importância do acesso a role models para a criação de uma cultura polifônica e diversa, onde todos e todas sintam-se encorajados a falar.
Com os dizeres de Segal em mente, me pergunto quais estruturas possibilitaram que Plath fosse alçada ao cânone (e não Gwendolyn Brooks ou Lucille Clifton, pra citar só duas autoras contemporâneas e conterrâneas de Plath que eram muito, muito mais ousadas e inovadoras, tanto nos temas, quanto na forma). Me pergunto, com tristeza, se o acesso da poesia de Plath ao posto de “clássico da literatura” se deu pelo fato de que, sendo o cânone inventado e “administrado” por homens brancos, a poesia dela seja palatável para eles – já que sua obra se situa (estética e tematicamente) em universos que os homens brancos donos do cânone conseguem visualizar: o contexto pode até ser meio assustador, mas eles sabem o que é ter uma mulher ciumenta e com daddy issues em casa (#contémsarcasmo).
Precisamos questionar o cânone, inventar um que contemple os desejos temáticos e estéticos de mais gente, e não somente desses boys. Esse é, talvez, o motivo mais importante da reimpressão de Ariel por aqui. Mas aí vêm os problemas da reimpressão em si.
Sem atualização e revisão, o Ariel da Verus tem prefácio de Frieda Hughes, escrito em 2004, e texto de apresentação de Rodrigo Garcia Lopes, um dos tradutores. O texto da filha de Plath e Hughes tenta, inúmeras vezes, defender a reputação de seu pai (coisa que, aliás, ela tem todo direito de fazer), o que faz com que o texto seja relativamente inútil do ponto de vista histórico. Além disso, o texto de Garcia Lopes, escrito em 2007, soa empoeirado porque não se aproxima do Brasil atual. A reedição da Verus perde a oportunidade de pensar o lugar de Ariel no Brasil pós-Golpe, pós-primavera feminista, pós-Um útero é do tamanho de um punho, o incrível livro de Angélica Freitas. E isso não somente é uma decepção, como um descuido um tanto imperdoável, porque imagino que a decisão de reimprimir o livro se dá também por causa desses acontecimentos.
A parte boa: como na edição de 2007, a reimpressão de 2018 é a versão original deixada por Plath antes de morrer, e não a que foi mutilada por Ted Hughes e que circulou no mundo entre 1965 e 2004. Os manuscritos originais em inglês, que também estão no livro, possibilitam que nos aproximemos não somente do que Plath quis que Ariel fosse, mas também do processo de sua escrita, o que é maravilhoso.
* Adelaide Ivánova é poeta, tradutora e fotógrafa, autora de Polaroides e O martelo