Maria Valeria. ju.18. Pedro Vasconcelos Arquivo Pernambuco

 

Nota da edição: O texto abaixo se detém em Outros cantos, romance de Maria Valéria Rezende lançado em 2016 pela Alfaguara. Como esteve recentemente no meio de uma celeuma sobre crítica no Facebook da autora, resolvemos convidar Alcir Pécora, crítico literário e professor (Unicamp) para analisar a obra e poder lançar mais elementos para os leitores pensarem o trabalho de Maria Valéria. 

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Maria Valéria Rezende tem uma história de vida incomum para uma escritora contemporânea. Nascida no porto paulista de Santos, em 1942, entrou para a Congregação de Nossa Senhora, tornando-se cônega de Santo Agostinho em 1965. Para quem nunca ouviu falar, trata-se de uma ordem religiosa fundada na França, no século XVI, com nítida inspiração jesuítica e especialmente dedicada ao ensino das crianças e ao auxílio aos doentes.

Segundo fontes genéricas, Maria Valéria participou da resistência contra a ditadura e viajou para vários lugares do mundo em diversas atividades missionárias. A partir do início dos anos 1970, incumbiu-se de trabalhos de educação popular no interior de Pernambuco, tendo posteriormente se transferido para o sertão paraibano, onde esteve até 1988, quando se mudou para João Pessoa, lugar em que vive desde então.

Ao que tudo indica, estamos falando de uma mulher culta e de ânimo espevitado, com vocação religiosa e militância política firmemente provadas junto à população mais miserável, não apenas do Brasil, mas de vários lugares do mundo.

Tendo isso em mente, é difícil não pensar também que a narradora e protagonista de Outros cantos (2016), quarto romance de Maria Valéria, seja uma criação que se nutre das próprias memórias da autora, ainda que o livro não se apresente como autobiografia ou relato memorialístico. No entanto, basta ler algumas páginas dele para sentir o ritmo de uma criação que dispõe de sua própria verdade, sem precisar escorar-se numa história alheia à de suas personagens.

Explico-me melhor.

A narrativa, que venceu o Prêmio São Paulo de Literatura no ano passado, se orienta pelas lembranças de Maria, septuagenária que perfaz uma longa viagem de ônibus, sertão nordestino adentro, até a sede de um sindicato de trabalhadores rurais que a convidara para fazer “uma reflexão crítica sobre o pensamento dominante e a influência televisiva”, e ajudar na elaboração de “uma proposta educacional adequada à realidade sertaneja”. Como se vê, os termos que dão a razão da viagem atual são genéricos, quase chavões programáticos, mas não assim as vivas lembranças que se sucedem ao longo de seu trajeto.

Predominam as que referem à chegada de Maria a Olho d´Água, um vilarejo do alto sertão nordestino, há 40 anos, e, em segundo plano, as de suas andanças por dois outros desertos: o Saara argelino e o de Zacoteca, no México. Já pelas analogias entre os lugares de escassez, percebe-se que o acento simbólico do deserto como espaço de provação é essencial – ainda que, exatamente como nas alegorias bíblicas, o simbólico jamais possa prescindir de sua concretude existencial e histórica.

Em meio às recordações de Olho d´Água, revela-se a identidade da protagonista como militante massista (termo de época que identificava a tendência oposta às facções militaristas do movimento clandestino de resistência à ditadura), incumbida de misturar-se à população sertaneja, disfarçada de professora voluntária do Mobral. O objetivo de sua ação seria preparar o terreno para a vinda de outros companheiros e conscientizar os sertanejos sobre os desmandos dos coronéis da terra (“o Dono”) e, por extensão, as contradições do Poder.

Sobre o movimento 

A narração evidencia o choque cultural inicial entre Maria e os camponeses, seguido de um difícil processo físico e espiritual de aprendizado, no qual a arrogância de quem pensa ter vindo exclusivamente para ensinar e dar consciência, paulatinamente cede espaço à humildade diante da complexidade do saber arcaico dos costumes locais. Quer dizer, aos poucos, na entrega radical do próprio corpo ao trabalho, Maria supera a incompreensão entre as teses estudantis e a lida implacável da gente do sertão.

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O relato corre rápido, porém seguro no emprego de um léxico original, castiço, sobretudo quando referente às operações manuais dolorosas de confecção das redes, nos quais a protagonista gradativamente passa a reconhecer a precisão dos gestos, a beleza das formas, e até a fugidia presença divina, num ambiente nos limites de sobrevivência, onde as letras que pretende ensinar parecem sinais longínquos de “ilhas de privilégios”.

Particularmente sutil é a composição da ideia de sacralidade da água nos desertos, obtida mediante a equivocação (a figura de linguagem equivocatio) de dois sentidos articulados na noção de “presente”: primeiro, o tempo presente dos extremos climáticos; depois, a oferta, o dom da memória, que pensa e aprofunda a experiência enquanto realimenta a saudade dos tempos vividos em Olho d´Água.

O grande trunfo dessa narrativa fundada em lembranças, porém, é a sua condução não linear, obtida pela aplicação de uma espécie de procedural play, isto é, por uma rotina quase aleatória representada pelo manuseio de objetos escondidos numa caixa de guardados – mais precisamente, sete objetos ou “amuletos” –, todos eles ganhos por Maria, em tempos e lugares diversos, mas sempre em situações de pressa e perigo, no âmbito da clandestinidade.

E, mais importante, são objetos ganhos sempre de um mesmo homem. Ainda que a cada vez atenda por um nome diferente, ele é reconhecível pelo mesmo olhar penetrante e imperioso, que paralisa ou adoece Maria e que a faz entrever, como num raptus místico, a consumação de suas esperanças. Há algo nele de angélico (não à toa, por vezes se chama Miguel ou Michel), ou de cristológico: uma presença epifânica tão perturbadora, ainda que brevíssima, que basta para suspender a lida cotidiana como um incêndio de paixão.

Ali, em Olho d´Água, essa presença manifestara-se na figura de Antonio, um “vaqueiro encantado”, como Maria o pensava, e que se generaliza como um misterioso aboio, o chamado do vaqueiro ao seu rebanho já ao entardecer de mais um dia de labuta. É talvez o mesmo aboio que espera ouvir a qualquer instante do vaqueiro que ocupa a cadeira ao seu lado no ônibus que a conduz, na velhice, ao seu sertão original.