O corpo gordo como uma casa que se habita, mas não se quer morar. Assim é a primeira linha do romance A gorda da portuguesa Isabela Figueiredo, que chega ao Brasil pela editora Todavia. A autora é uma das atrações da Flip 2018, que ocorre de 25 a 29 de julho em Paraty (RJ). Mas, antes de entrar neste corpo e na vida da protagonista Maria Luísa, pautada pela vida entre Lourenço Marques (hoje Maputo, capital de Moçambique) e Portugal, devemos limpar os pés. É dentro desta casa que vamos pisar nos sentimentos, sonhos e assombros da personagem.
Há que se atentar para a abertura do livro, logo ali na página 17. Se o nome do primeiro capítulo é Porta de entrada, a autora lista 21 músicas como epígrafe sonora, que anuncia as escolhas e forças das 208 páginas da obra. A playlist começa com Nina Simone e segue por nomes como Janis Joplin, Nirvana, Patti Smith e Amy Winehouse, imprimindo uma sonoridade ora triste, ora feliz, ora arrebatadora sobre os acontecimentos na vida da protagonista Maria Luísa. A seleção traz, também, um pouco da música portuguesa misturada com U2 ou The Cure. É como se o corpo e a alma da personagem não coubessem na narrativa e extrapolassem as páginas do livro, levando as sensações também para a música. Portanto, não só Maria Luísa não cabe nos cantos. Sua própria história não cabe nas páginas de um livro, precisa de mais espaço – o da música. Muitas músicas. A narrativa é, assim como a protagonista, gorda.
Cada capítulo é nomeado como um ambiente da casa e abre ao leitor uma vida pautada na relação da protagonista com seus pais (filha única a assisti-los partir e sofrer de saudade) e poeticamente reconstruída a partir da relação com o próprio corpo – que nunca se quis e quase sempre foi rejeitado. Porém, nenhum dos cômodos nos dá pistas ou respostas óbvias sobre a personagem. Não há cronologia alinhada aos espaços.
Apresentar o corpo e a vida a partir dos cômodos do apartamento em que Maria Luísa viveu a maior parte da vida traz à tona o óbvio: nosso corpo é nossa casa. O passeio pela casa em Almada é também um convite a conhecer o interior de uma vida como a de todos nós – cheia de marcas. E, neste caso, talvez mais partidas do que chegadas.
O leitor vai e volta na vida de Maria Luísa, mas nunca pisa no mesmo lugar. Conhece todos a morada, mas nunca o mesmo canto. Há sempre uma novidade após a curva narrativa da personagem, que ora é uma mulher, ora uma adolescente, ora uma garotinha. Mas é sempre gorda. É-nos relevante, mas não mais do que os sentimentos, saber em que tempo – passado, presente ou futuro – isso ocorre. Estamos diante de um romance que se constrói como relato de vida, e relatos de vida não são lineares. Assim como as memórias. Estamos diante da história de uma mulher gorda. E muito forte.
Este ser permeia toda construção da história e nos faz visitar memórias e acontecimentos como quem ouve uma boa história de vida. Verossímil. A própria autora enuncia, ainda antes de cruzarmos a soleira que nos separa da porta de entrada do romance e das verdades cruas ditas por ali: Advertência. Todas as personagens, geografias e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade.
Daí o resultado: uma obra ímpar e sincera, em que fica claro que ela não escreve para agradar quem quer que seja. Talvez a principal força da obra seja a coragem de provocar desconcertos com leveza. E ela segue, desmontando clichês, esmurrando absolutismos e ignorando moldes. As passagens da vida de Maria Luísa não poupam o leitor ao apontar os preconceitos com os quais uma mulher gorda é obrigada a lidar. E a autora faz isso com maestria.
Maria Luísa é uma das raras personagens gordas da história da literatura que são criadas de forma não caricatural. O lançamento se encaixa no que observamos como um movimento, ainda tímido, no mercado literário para lançar obras – ficcionais ou não – que representem a pessoa gorda como ela é. Temos exemplos como o autobiográfico Fome, da autora Roxane Gay; o ficcional Poder Extra G, da Thati Machado, que antes de ser impresso e distribuído por uma editora, conquistou mais de 1 milhão de leitores na plataforma wattpad; o Não se nasce gorda, de Gabrielle Deydier; ou ainda o Gorda não é palavrão, da modelo plus size Fluvia Lacerda. Em todos os casos citados a pessoa gorda é retratada com, vejam só, respeito. Distante dos manuais impressos sobre como ter o corpo magro, como conquistar alguém usando dos atributos físicos padronizados e que reiteram que só é possível a uma mulher ser feliz se ela for magra, tais volumes tencionam chacoalhar os leitores e, arrisco dizer, uma fatia do mercado editorial que pode enxergar na necessidade de representatividade uma boa fatia de lucro, haja vista que mais da metade da população brasileira tem sobrepeso ou é gorda e quer se sentir representada, distante, especialmente, das chacotas tão recorrentes na indústria do entretenimento, sem excluir a literatura.
O cruzamento das memórias e do romance são o principal ponto da voz narrativa de A gorda, que passeia ainda por temas recorrentes como racismo, imigração, culto ao corpo, pressão estética e feminismo, mas sem claramente falar sobre eles. Está tudo ali, intrincado à obra, que nem de longe parece ser panfletária ou política, porém milita de forma desconcertante e diferente do que estamos habituados a ler.
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Há tristeza. Há inúmeras perdas. Há desejo. Há dias e momentos felizes. Há a busca incansável pela aceitação. Há que se ter estômago e fome para conhecer a protagonista. Maria Luísa tenta ter uma vida como a de sua mãe – a figura materna é marca do livro e começa pela dedicatória da autora à própria mãe, que não sabemos ter ou não lido a obra –, de suas (poucas) amigas, conhecidas e colegas de trabalho. Maria Luísa deseja ser amada. Seja pelo homem de sua vida, seja por um filho, ou pelos cães. Mais: ela quer ser aceita. Quer caber, com seu corpo gordo, no mundo que a rejeita e, o tempo todo, lhe diz ser impossível existir da forma como é:
Não me tornei invencível. Ainda penso como gorda. Serei sempre uma gorda. Sei que o mundo das pessoas normais não é pra mim. Continuo a ter o defeito, mas não se vê tanto; tornou-se menos grave. Há momentos em que me parece ter ganhado uma nova vida, como os que passaram por experiências de quase morte, viram o túnel para o outro lado, com a atraente luz branca no final, chamando-os, mas escolheram voltar. Eu também tenho escolhido, e mesmo que já ninguém me exclua, excluo-me eu, à partida. Conheço muito bem os meus limites. Aquilo a que posso ceder e o que me está vedado para sempre. Os aleijados são, como se diz dos diamantes, eternos.
E assim, sendo gorda, mesmo quando já não é mais – e obrigada a conviver com as marcas da exclusão que isso deixa para toda uma vida – é que Isabela Figueiredo desenrola sua trama. A ficção parece se confundir com a vida da autora. A protagonista, uma mulher solitária e professora no Alentejo. A escritora, uma professora na Margem Sul de Portugal. Ambas, amantes dos livros e das palavras, realizaram gastrectomia. Para além da Margem Sul, Isabela faz com que sua personagem passe à margem da vida, confinada em um corpo que a isola socialmente. A personagem Maria Luísa, narrada em primeira pessoa, dá o que podemos chamar de “safanões” nos leitores mais habituados (e que talvez até defendam) aos próprios preconceitos sob pretextos de beleza, saúde, ou o que quer que seja. Mas, diferente da protagonista, Isabela, como contou em uma mesa literária no Brasil em novembro de 2017, desenvolveu o “orgulho de ser gorda” no momento em que se tornou magra. E talvez daí o motivo da escrita. Temos um livro triste e bonito.
Pelas experiências íntimas e pessoais, conhecemos sempre um pouco mais da Maria Luísa, filha de pais africanos, que a enviam para a casa de parentes portugueses, na adolescência, para que possa estudar. E é no internato em que ela conhece Tony, uma amiga oriunda de Angola, com quem o diretor da instituição julga que, por serem imigrantes, tenham muito em comum. As lembranças da amiga fundem-se às de David, um jovem poeta por quem Maria Luísa se apaixona e passa a se devotar, por toda uma vida. Já ele não a poupa. Assim como toda sua vida. Como toda sociedade.
Isabela nos apresenta uma Maria Luísa que traz representatividade. Que enfrenta problemas cotidianos como toda mulher gorda enfrenta. Que eu enfrento. Que, diferente dos milhares de livros encontrados até então – com raríssimas exceções –, as protagonistas estão em uma busca incansável pelo “corpo perfeito”, por emagrecer, infelizes em suas vidas, casas, roupas. Infelizes no amor, na carreira, com a família; prova que a busca pela felicidade, pelo relacionamento dos sonhos, por uma melhor remuneração, pela viagem da sua vida, não é uma exclusividade das mulheres magras. A gorda que é rejeitada e se mata até emagrecer e “conquistar o homem dos seus sonhos”. A gorda que é engraçada. E só. A gorda que é ridicularizada por ser gorda e emagrece para “dar a volta por cima”. A gorda que persiste no corpo perfeito em todas as páginas. A gorda que não namora. Que não se relaciona. Que não é amada. Que não trabalha. Que é doente. É sempre a gorda. A mesma gorda. A gorda que não me representa.
Maria Luísa é uma gorda tão real quanto qualquer outra. Tão verossímil com uma magra. Tão transgressora quanto qualquer mulher gorda que ousa contar como vive – e enfrenta o preconceito – sem, necessariamente, erguer uma bandeira. Enfrenta a dificuldade cotidiana que é encontrar e conseguir comprar uma jaqueta de frio que sirva e aqueça, na disputa por sentido da vida enquanto ainda é uma adolescente e precisa encontrar seu lugar:
Sobre a bata, um blusão azul da Melka, em caqui grosso, comprado num saldo dos Porfírios, na Baixa, em Lisboa, no final do verão anterior. Encontrei-o num monte de roupa de homem, quase tudo em XL, porque os homens têm direito a ser grandes (...). Não escolhi a cor nem o modelo. Nada me servia. Escolheu-se sozinho. Eu cabia nele, e assim tornou-se o blusão certo. Não aquece, mas serve-me. Visto mais camisolas interiores. Cá me arranjo. Sei manter-me à tona, não dar nas vistas, disfarçar-me na tuba e esperar, pensava eu. O futuro será melhor. Há de trazer-me uma casinha humilde mas calorosa, que será o meu castelo e meu refúgio.
Estar fora do padrão em um mundo padronizado e industrializado é um fator que desloca. E a sinceridade do livro A gorda remexe em várias estruturas. Distante da autopiedade, do medo ou da incessante busca por aceitação que a personagem anseia, a autora consegue colocar o dedo na ferida com destreza. Faz isso sem poupar ninguém, nem mesmo o amor dos pais, dos homens e mulheres que passaram por sua vida, dos filhos que não chegou a ter:
Dispo a seguir as roupas que escondem o meu amado corpo feio, esfacelado, ainda sem escaras, mas tão destruído pela fome quanto pela saciedade. Os restos escaqueirados do corpo desejado e negado. Visto o pijama. Tomo a benzodiazepina genérica. Há sempre um novo dia. Amanhã. (...) Neguei meu corpo ao David uma vez (...). A sua vergonha de mim impunha-se como uma ferida impossível de sarar, constantemente esmada pela confessada rejeição, que era a dos outros, mais que sua, e encerrava um preconceito que o amor teria que transpor ou não existiria, segundo as minhas convicções.(...) O David não sabia que a sua vergonha não implicava apenas a sua rejeição, mas a de toda a cultura que nos envolvia através dele. As palavras dos amigos, que representavam todos os homens, valiam mais para si que a nossa união, o nosso riso. (...) Todo esse discurso confirmava a minha impossibilidade de inclusão no mundo feminino. Eu não era uma mulher, mas uma massa disforme de carne sem valor.
Isabela Figueiredo conseguiu nos apresentar um livro há muito necessário, em que usa o corpo como arma, munição e luta, bravamente, numa guerra de egos, corpos – ainda vivos! – e amor. Temos uma história comum, raramente escrita. Sacia nossa fome de uma literatura envolvente e relevante. Fica a ânsia pelo lançamento das outras obras da autora no Brasil.
* Jessica Balbino é jornalista, curadora de eventos literários e editora do blog Margens