Gidalti.Moura.Jr resenha.jun.18

 

Em meados de abril um shopping de Belém retirou da exposição que mantinha em seus corredores a capa de Castanha do Pará (imagem acima), livro de Gidalti Moura Jr., vencedor do Jabuti de melhor história em quadrinhos de 2017. Deixou em seu lugar um retângulo preto, bastante simbólico para quem já viveu a ditadura. Bastou um PM se dizer “ofendido” pela imagem, algumas manifestações nas redes sociais e pronto. Não podemos esperar que bancos privados e shoppings centers defendam, de fato, a cultura brasileira, mas poderiam ser um pouco menos explícitos em sua covardia. Nossa posição diante da censura deve ser sempre a do apoio ao artista censurado, pouco importa a qualidade de sua obra, se sua proposta nos diz algo, se seu estilo nos agrada ou não. Desde que não dissemine discurso de ódio ou calúnias, a defesa da liberdade de expressão não é algo a ser negociado. Dito isto, Castanha do Pará é um livro que merece ser lido – como uma resposta à tentativa de censura, sim, mas, principalmente, porque é uma obra que pode acrescentar algo ao nosso modo de ver e interpretar o mundo.

O livro, gestado e produzido ao longo de três anos, foi editado de forma independente, após uma campanha para arrecadação de fundos. Ele conta a história de Castanha, um garoto que vive nas ruas de Belém, junto ao Mercado Ver-o-Peso. Em constante movimento, até porque é enxotado de todos os lugares, o menino é representado com seu corpo humano franzino e uma cabeça de urubu – os outros garotos também têm cabeças de animais, ao contrário dos adultos, com aparência “normal”, embora sempre violentos e maledicentes. A ideia remete ao clássico Maus, de Art Spiegelman, com seus judeus ratinhos, e funciona tão bem quanto lá. Em pouco tempo já estamos acostumados com a imagem e o menino deixa de ser o estranho para se tornar aquilo que precisamos enxergar.

Inteiramente colorida em aquarela, o que lhe dá uma leveza que contrasta de forma inteligente com seu tema, a HQ foi inspirada em um conto, intitulado Adolescendo Solar, do escritor paraense Luizan Pinheiro. A narrativa original – em terceira pessoa, mas acompanhando a perspectiva do menino – é breve, mas já sugere algumas imagens fortes, como o detalhe de um corte no pé do garoto, ou a ideia de que o mercado é uma espécie de organismo vivo, que acorda e anoitece. A partir daí, Gidalti Moura Jr. faz explodir em suas páginas uma cidade que pouco frequenta o imaginário nacional, distante de suas telenovelas e mesmo do seu cinema. E o que é exótico, como a cabeça de urubu do Castanha, vai aos poucos se tornando familiar, e vamos nos deslocando ali dentro, tropeçando nas diferenças de linguagem, no estranhamento da paisagem urbana, e reconhecendo a mesma miséria que se vive em todo canto desse país, o mesmo descaso e violência que sofrem nossas crianças (talvez não nossos filhos e netos, mas os dos outros).

Há pelo menos três narrativas entrecruzadas no livro, sem que isso cause confusão na leitura: a história contada pela vizinha, que chama um policial para ver se ele localiza o garoto sumido que a avó aguarda na casa ao lado; a narrativa da movimentação de Castanha pelas cercanias do mercado público; e as fantasias do menino – com super-heróis saídos da televisão e times campeões de futebol –, talvez sonho, talvez imaginação, às vezes delírio provocado pela cola. A primeira narrativa, mais lenta, vez ou outra se sobrepõe (como texto) à segunda, que mostra basicamente gestos e ação do protagonista, e daqueles que o cercam. Já a última, irrompe aqui e ali em cores vivas e páginas inteiras, ou mesmo duplas, dominando o espaço narrativo até que se desmonta em triste realidade outra vez.

Embora seja ambientando nos anos 1990, com a presença de Jaspion, Ayrton Senna e Robocop, entre outras figuras importantes, esse é um livro que fala muito dos dias de hoje. Se a situação dessa infância desprezada não se modificou tanto da década de 1990 para cá, o discurso sobre ela nunca foi tão violento. As “pessoas de bem”, que vão à missa e ao culto pela manhã e à tarde gritam para que matem e esfolem adolescentes, são representadas com muita fidelidade pela vizinha que se diz preocupada com o garoto, mas que na verdade o constrói como o bandido que nunca foi. É exatamente na contradição entre a fala dessa mulher e as ações do menino que o autor deixa marcado seu repúdio a um discurso que vem das esferas dominantes, mas que facilmente se dissemina entre aqueles que mais têm a perder quando ele é colocado em prática. A vizinha, afinal, é mãe de um adolescente, também.

Castanha do Pará é uma obra que deveria estar nas escolas, justamente para fazer frente a esse discurso. Com o cuidado nos detalhes e o respeito à perspectiva do outro, com a delicadeza de suas cores e a segurança dos movimentos das personagens, o livro pode ser um instrumento para a compreensão de nossa realidade e, ao mesmo tempo, uma forma de ampliação dos recursos estéticos disponíveis para reinterpretar o mundo.

 

* Regina Dalcastagnè é professora e pesquisadora da Universidade de Brasília. Lançou, entre outros, O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro