A estreia da escritora Selva Almada no Brasil foi em 2015, com o romance O vento que arrasa, pela extinta Cosac Naify. Obra de título bíblico, literário, sobre uma Argentina profunda, encoberta por fuligem rural e distante do fascínio urbano da Buenos Aires retratada pelos nomes (aqueles mesmos de sempre!) canônicos que costumam ser publicados por aqui. A lembrança de O vento que arrasa nesse texto não é apenas para pontuar a trajetória da autora, mas também para destacar o desconforto causado pelo título do seu livro Garotas mortas, de 2014 e lançado há pouco no Brasil pela Todavia.
Longe do tom grandiloquente da expressão O vento que arrasa, Garotas mortas é desolador na junção objetiva que as duas palavras, colocadas lado a lado, carregam. Olhamos a capa do livro já sabendo o que aconteceu, que o destino não é revogável e que a autora está ciente de sua impotência ali. Garotas mortas descreve o assassinato de Andrea Dunni, Maria Luísa Quevedo e Sarita Mundin, todos ocorridos nos anos 1980 da redemocratização argentina. E todos em cidades do interior, todos sem um culpado preso, todos sujos pela mesma violência de gênero.
Garotas mortas é o segundo livro de uma autora argentina a falar sobre feminicídio, lançado no Brasil em menos de um ano. O primeiro foi As coisas que perdemos no fogo, coletânea de contos de terror de Mariana Enriquez, que relatava mulheres que se protegiam dos seus agressores lançando chamas contra os próprios corpos.
A voz de Selva Almada que narra e protagoniza o livro não parece em busca da solução dos casos, como uma detetive qualquer. A investigação aqui é literária; é de compreensão e não de culpados. Sua voz quer entender o porquê de uma mulher ser morta apenas por ser mulher. Entender o porquê de uma mulher, como aconteceu com Andrea Dunni, poder ser assassinada dentro da sua própria casa, em sua própria cama, com os pais dormindo ali do lado. Garotas mortas olha para a banalidade que as palavras garota e morta ganharam em meio à sociedade.
“Desde pequenas nos ensinavam que não devíamos falar com estranhos e que devíamos tomar cuidado com o Tarado. O Tarado era uma entidade tão mágica quanto, nos primeiros anos de infância, era o La Solapa e O Homem do Saco. Era quem podia te violentar se você andasse sozinha tarde da noite ou se aventurasse por lugares desertos. Era quem podia aparecer do nada e te arrastar até uma construção”, reflete a autora no começo do livro sobre a imagem do agressor como o visível desviado social, que fora construída no seu imaginário desde criança. As mortes daquelas garotas lhe simbolizaram que o agressor podia também ser o pai, o namorado, o amigo de total confiança… Qualquer um. Bastava você ser mulher e pronto. Era preciso lançar luz e lançar nome para a imagem turva e sem identidade do termo Tarado.
Assim, Selva Almada nos leva por um percurso que busca entender essa desconstrução da figura do agressor. Escuta amigos, familiares e pessoas relacionadas com os crimes. Tenta escutar até mesmo as vozes das próprias garotas com a ajuda de uma cartomante. Um ato bastante simbólico, já que feminicídio é também silenciamento. Das três, duas “falam” de um suposto além. Sarita Mundin, no entanto, jamais envia qualquer sinal. Permanece com sua voz confiscada. A mãe dessa garota morta não acredita que ela tenha de fato morrido (“Se ela tivesse morrido, apareceria para mim em um sonho. Nunca apareceu. Nunca mais ouvi sua voz”, explica ela com a fé que a sustenta) e que os supostos restos mortais da filha pertencem, na verdade, a outra garota. Também assassinada e desovada num terreno baldio.
Garotas mortas destaca outra vez Selva Almada como uma das grandes narradoras da literatura hispano-americana contemporânea. Chama a atenção a forma como ela faz questão que o livro não fique restrito a um tipo só de gênero. Não é uma obra policial (apesar de haver crimes e uma investigação em curso) e não é propriamente um relato autobiográfico (apesar da história de Selva Almada ser essencial para o que está sendo escrito e procurado). O livro é tudo isso, mas se sobressai nele um certo tom de tragédia grega, e tal qual numa tragédia grega os deuses aqui não são confiáveis. Há em Garotas mortas uma amplitude de potencialidades quando o comparamos com O vento que arrasa - esse, sim, um romance convencional, que cresce justamente pelos limites restritos que a autora impõe à narrativa.
É muito bom ver grandes escritoras hispano-americanas, como Selva Almada e Mariana Enriquez, sendo publicadas no Brasil, e com livros tão poderosos (e tão contundentes na descrição da nossa corrente crônica de terror como latinos).
* Schneider Carpeggiani, editor do Pernambuco, é jornalista e doutor em Teoria Literária (UFPE). Também atua como curador de eventos literários.