O Leviatã do título da nova reunião de contos de Cristhiano Aguiar parece remeter a uma sensação de anonimato em meio a afetos, identidades, cidades e destinos. Um anonimato absolutista, perfurante. Em cada um dos textos, alguém recebe o estalo de que não se reconhece ou de que não é reconhecido em lugares aparentemente banais: seja o mendigo na rua, seja diante de uma pane de elevador ou mesmo pelo sotaque, que aqui aparece como uma espécie de signo/stigmata a perseguir aqueles que se afastaram de casa.
O conto de abertura, Miniatura, já nos recebe com o alarme do desconhecido se infiltrando – “Ouvi o som de um piano no domingo passado. Abandonei o que fazia, fiquei imóvel: a música vinha do meu prédio, ou de algum edifício vizinho”. No conto Teresa, a banalidade do cotidiano é apresentada disformemente, só para destacar que talvez ninguém esteja olhando e esse é o sintoma dos tempos: “Pássaros pousam nos ombros de Teresa, mas não cantam. Nos últimos dias ela costuma, sempre aos finais de tarde, sentar nos degraus que dão acesso à entrada do edifício. Com os pés encostados e as mãos fechadas, observa a rua: ouvidos atentos aos ruídos, aos olhos sujos. Ninguém parece se incomodar com a presença dos animais. Os pássaros pouco se movem após o pouso – são escuros”.
A geografia da São Paulo que Cristhiano escolheu para localizar os contos diz muito sobre a condição dos seus personagens. É a São Paulo da Consolação, de Santa Cecília, do centro, de locais que são de residência, mas também de comércio, onde as noções de fixo e de mobilidade acabam se confundindo. Rua e casa num só endereço. É uma São Paulo que se dá a alugar mais fácil para desconhecidos e/ou novatos.
E nessa metrópole em que o anonimato é o regente maior, torna-se curiosa a aproximação que o autor faz do gênero fantástico. O que nos assusta não é alguém voando pelos ares ou fantasmas convencionais. O que nos assusta, o que nos leva a desconfiar do concreto é justamente o outro, aquele próximo a nós, nosso espelho insuspeito. Como no conto (O laboratório do senhor Mosch Terpin) em que uma garota chega em casa e encontra o colega de apartamento cercado de caixas de livros e de memórias familiares.
Erguido como um livro de contos, Na outra margem, o Leviatã poderia passar também por um romance, graças ao tom homogêneo que o autor emprega às histórias e pela reaparição de personagens, jogando com a ideia de alter ego. Ao decorrer da leitura, fica clara a inspiração que Cristhiano toma de nomes da literatura hispano-americana, sobretudo do uruguaio Juan Carlos Onetti e do argentino Juan José Saer (lembrado numa das epígrafes da obra).
Na outra margem, o Leviatã chega para reposicionar a escrita de Cristhiano Aguiar na literatura contemporânea, após ele ser uma das apostas da Granta com jovens autores brasileiros e reposicionando a escrita após uma estreia, também com contos, que o próprio autor preferiu descartar. Uma escrita segura do lugar e dos afetos que precisa registrar.
No processo de resenhar Na outra margem, o Leviatã, é indispensável falar do capricho gráfico da edição proposta pela editora Lote 42 - clean e ao mesmo tempo imbricada, como as histórias que nela tomam espaço.