Sophia Secchin.resenha.abr18

 

A primeira Sophia a gente nunca esquece: a minha apresentou-se em 1967, quando, aos 15 anos, tive oportunidade de conhecer meia dúzia de seus poemas na antologia Poetas portugueses modernos, organizada por João Alves das Neves. Desde então, jamais esqueci versos como “Aqui, deposta enfim a minha imagem,/ Tudo o que é jogo e tudo que é passagem,/ No interior das coisas canto nua”. Anotava o organizador: “A sua poesia é de uma excepcional pureza lírica/.../ Autora de um ensaio sobre Cecília Meireles, com quem alguns podem compará-la”.

De fato: a força de sua poesia se ombreia com a de Cecília, e a presença constante da Natureza, em ambas as grandes escritoras, reforçaria tal parentesco. Poderíamos, talvez, matizar a aproximação, salientando que a poetisa brasileira, não obstante declarar-se uma “pastora de nuvens”, frequentava um mundo especialmente vegetal e animal, enquanto a portuguesa valoriza sobremodo a natureza mineral, patente nas águas que seus versos, desde sempre, percorreram, a partir do Dia do mar (1947) até As ilhas (1989), atravessando de permeio As navegações (1983).

Estreando com Poesia, de 1944, nada menos do que 60 anos foram necessários para que uma expressiva seleta de sua obra desembarcasse no Brasil: os Poemas escolhidos, a cargo de Vilma Arêas, de 2004. A esse título une-se agora Coral e outros poemas, com a competente seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz. Num acurado estudo introdutório, “Breve percurso rente ao mar”, ele situa com clareza as linhas principais da produção de Sophia, tanto no que diz respeito a constantes temáticas, quanto no que toca a recursos de construção.

Cecília Meireles também foi “marinheira”, em Viagem e Mar absoluto. O mar de Sophia, porém, é relativo: relativo à História, aos personagens que a produzem e a sofrem; não é tributário de ideais de assepsia que sobrepairassem acima das aventuras (e desventuras) da contingência humana. Num texto-homenagem a João Cabral, ela escreve que a palavra faca “aparece/ No gume do poema/ Atravessando a história”. Reciprocamente, o autor pernambucano, bem parcimonioso no elogio a poetas contemporâneos, saudou-a num poema em que se refere ao sol, ao cristal e à luz marinha que cintila em sua obra.

Além de Cabral e de escritores portugueses (Camões, Cesário Verde, Fernando Pessoa, Jorge de Sena), vários poetas brasileiros encontram afetuosa guarida nos versos de Sophia: Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Murilo Mendes. Seu arco de referências engloba tanto o mundos helênico e latino (Homero e Horácio) quanto o caldeirão político do século XX, quando se alinha às vozes libertárias e anticolonialistas – leia-se o poema “25 de abril”, em louvor à Revolução dos Cravos, de 1974: “Esta é a madrugada que eu esperava/ O dia inicial inteiro e limpo/ Onde emergimos da noite e do silêncio”. Leia-se, no mesmo diapasão, “Brasil 77”: “Brasil espaço e lonjura/ Em nossa recordação/ Mas ao Brasil que tortura/ Só podemos dizer não”. Não por acaso, a cidadã Sophia foi eleita deputada pelo Partido Socialista na Assembleia Nacional Constituinte, em 1975. Ao lado da pátria portuguesa, não convém, todavia, esquecer a vocação nômade de um discurso que se projeta em dimensão ao mesmo tempo fugaz e universalista: “A minha pátria é onde o vento passa”.

Conforme salientou o prefaciador, é notável a inteireza e a integridade de seu projeto poético. Integridade, diríamos, elástica, na absorção de temas eventualmente estranhos entre si, mas que convivem numa harmonia de largo espectro, onde até algumas cidades obtém acesso na pauta dessa escritora escassamente urbana.
Os 14 livros representados na coletânea fazem ecoar a mesma enunciação despojada que perscruta o interior da matéria, não para comprazer-se na escuridão, mas para trazê-lo do fundo e submetê-lo ao crivo de uma realidade tecida de inteligibilidade e mistério. Ao saudar, mais uma vez, João Cabral, ela parece falar de si, através de uma espécie de “alma sósia” que confere ao outro: “Pois é poeta que traz/ À tona o que era latente/ Poeta que desoculta / A voz do poema imanente”. Todavia, tanto nele, João, quanto nela, Sophia, a escritora intui que “Algo às vezes se alucina”. Sim, porque a excessiva serenidade clássica poderia implicar um mundo controlado, cujo pleno domínio culminasse em pastiches de um parnaso sem riscos. Ao contrário, a inquietação viceja, mesmo em mimosas paisagens: “Mas por mais bela que seja uma coisa/ Tem um monstro em si suspenso”. Dê-se ao “monstro” o nome que se queira: tempo, erosão, morte, esquecimento, dissipação. Horas pretéritas, com o destino “na amargura/ De serem perfeitas e serem breves”.

Sophia de Mello Breyner Andresen foi poetisa, tradutora, ensaísta, ficcionista, dramaturga. A excepcional qualidade de sua obra fez com que, em 1999, ela se tornasse a primeira escritora portuguesa a ganhar o Prêmio Camões. No ano de 2003, intitulava-se “Rainha Sofia”, numa deliciosa e involuntária homenagem à majestade de sua poesia, o importante prêmio com que foi contemplada. Outras láureas marcaram-lhe a trajetória, com direito, inclusive, a uma consagração póstuma. No poema “Inscrição” formulara um desejo: “Quando eu morrer voltarei para buscar/ Os instantes que não vivi junto do mar”. Porém Sophia, que faleceu, aos 84 anos, em 2004, não se abrigou no mar, e sim sob o mármore, no Panteão Nacional, onde, desde 2014, seu corpo repousa, para honra e glória da poesia em língua portuguesa.

 

* Antonio Carlos Secchin é poeta e ensaísta. Doutor em Letras, é professor emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras.