Levrero resenha.abr18

 

A senha de entrada do uruguaio Mario Levrero (1940-2004) no Brasil não poderia ter sido melhor, via o selo (infelizmente extinto) Otra língua da Editora Rocco, com a novela Deixa comigo. São pouco mais de 100 páginas que o colocam no mesmo campo de gravidade de outros grandes nomes da literatura em língua espanhola contemporânea como Vila-Matas, César Aira e Bolaño. Ou seja: temos aqui um jogo de detetive farsesco, um escritor desaparecido e a literatura como território de desconfiança e atração – e não iremos usar ainda a expressão “abismo” para falar de literatura.

A trama é simples: escritor frustrado, e já sem conseguir pagar suas contas, tenta emplacar um livro de qualidade duvidosa numa editora e escuta um “- O romance é bom - Mas…”. Não consegue o contrato de publicação, mas, sim, um bom dinheiro para caçar um autor misterioso supostamente chamado Juan Pérez, que envia os originais daquela que seria a próxima obra-prima uruguaia sem esclarecer seu paradeiro exato (e quem melhor para achar um escritor do que outro?). Precisa então caçar o gênio anônimo numa minúscula cidade com o peculiar nome de Penurias.

A busca acaba se dilatando numa caçada por um bote salva-vidas para quem se encontra numa encruzilhada existencial. Em certo momento, o importante não é mais achar Juan Pérez e, sim, algum novo êxtase, algo que reverta as toneladas de frustração trazidas pelo anos. Enfim, precisa encontrar um novo fato estético como farol. O escritor-detetive ainda não sabe, mas está treinando aí sua própria obra-prima tardia.

Somos guiados por essa procura desesperada e sem um foco preciso, com o humor ferino e melancólico do Levrero narrador e protagonista. Um momento em particular, quando o escritor-detetive deixa Montevidéu a caminho de Penurias e logo de cara perde um possível flerte que conhece no ônibus, é exemplar do que Deixa comigo tem a nos oferecer: “Por fim me animei a perguntar-lhe se ela também ia a Penurias imaginando combinar trabalho com o prazer; mas não. Ela ia a Miserias, uma cidade mais distante. Deixei a conversa definhar pois, como alertou William Blake, não é bom cultivar desejos que não serão satisfeitos”.

E é justamente localizado (emocionalmente) entre Penurias e Miserias, e também infiltrado por uma busca pela escrita (aqui podemos usar a palavra “abismo” junto de “literatura”), que está O romance luminoso, obra máxima de Levrero em tradução de Antonio Xerxenesky. O romance entrou na lista dos melhores em língua espanhola do último quarto de século, promovida pelo El País, ao lado de monólitos como 2666 (Bolaño) e A festa do bode (Vargas Llosa).

Lançado postumamente, O romance luminoso mantém a busca por algum fato estético que cause novas rachaduras, que faça a escrita ser perfeita como a respiração de um atleta. Mas aqui, removida a farsa policial, o tom é outro. Estamos diante de alguém (colado à ideia que temos de quem tenha sido Levrero) em meio ao início de um processo criativo penoso. Sobre o que escrever quando a vida não mais se dilata, quando viver é uma sequência de crises de hipocondria, de dormir e acordar e de sinais da falência do corpo e do desejo? O que escrever quando não se percebe que todos esses sintomas já são o próprio material da escrita? (Ao longo da leitura, lembrei-me da provocação que persegue Patti Smith por seu Linha M - não é tão fácil escrever sobre o nada. E o que Patti Smith faz é insistir na escrita. O Levrero de O romance luminoso faz o mesmo).

“O objetivo é pôr a escrita em andamento, não importa o assunto, e manter uma continuidade até criar o hábito. Tenho que associar o computador à escrita (...) Todos os dias, todos os dias mesmo que seja uma linha para dizer que hoje não tenho vontade de escrever, ou que não tenho tempo, ou dar qualquer desculpa. Mas todos os dias” - começa Levrero sua busca por alguma fricção, uma fagulha que seja, que não vem necessariamente da escrita, mas do contemplar o próprio ato de querer escrever, de transformar as tentativas em desejo. O “luminoso” (que faz pensar em epifanias, na luz da revelação religiosa etc) do título talvez venha do difícil exercício de autocontemplação de um artista no ato da criação. Um deus de si mesmo temporariamente interrompido.

Como uma matriosca autoexplosiva, pode-se dizer que o livro é dividido em duas partes - “Diário da bolsa” (o treinamento do corpo e da alma para a escrita) e “O romance luminoso”, que não ocupa nem 100 páginas das quase 700 do volume. Mas não é que O romance luminoso se divida de fato em duas partes. Levrero escreve-cria-vive numa espécie de contínuo, em que até as interrupções e os buracos negros são parte do processo, ou como é dito na a obra: “todo esse conhecimento não teria auxiliado em nada a experiência própria – ao abrir essa porta, esse prazer e esse temor –, assim como não ajuda os pesquisadores, nem mesmo me ajuda, agora, quando quero retomar esse caminho (e não posso!). Uma crença equivocada – a Terra-Purgatório – vale, nesse terreno, mais do que a mais brilhante e comprovada verdade científica”

Que a publicação de romances de Levrero seja ato contínuo, para trazer ao Brasil mais títulos desse bem guardado segredo do Uruguai.

 

* Schneider Carpeggiani é doutor em Teoria Literária (UFPE) e editor do Pernambuco